José Hildor Leal (*)
Notários e registradores discutiam, até bem pouco tempo, sobre a possibilidade de adotar regime de bens com efeitos retroativos, nas escrituras públicas ou mesmo em documentos particulares de declaração de união estável, até então sem contrato escrito.
É certo que união estável é fato que decorre da vontade de duas pessoas em constituir família, através da convivência pública, contínua e duradoura, sequer exigindo documento escrito, o que se aconselha seja feito para facilitar a prova de sua existência, além de estabelecer regras, a exemplo do regime de bens quando a intenção é que seja diverso do legal.
O artigo 1.725, do Código Civil brasileiro, dispõe que “na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às suas relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens”.
Este é o chamado regime legal, pelo qual há comunicação dos bens adquiridos a título oneroso, na constância da união estável, por qualquer um dos companheiros – os chamados bens aquestos, ressalvadas algumas situações, como sub-rogação, e ficando afastados os bens havidos em herança, ou por doação, que formarão patrimônio particular do respectivo titular.
A dúvida que pairava sobre a retroatividade ou não do regime de bens, a partir do momento da elaboração de documento escrito, acabou sendo espancada por recente decisão do Supremo Tribunal de Justiça - STJ, em novembro de 2021 (REsp 1.845/MS), ao entendimento de que na união estável o regime diverso do legal não retroage à data do início da convivência.
Com essa decisão, não sendo admitido modificar o regime de bens da união estável com eficácia retroativa, os tabeliães de notas devem se abster de lavrar escrituras públicas estabelecendo retroatividade, se não for confirmada a continuidade da comunhão parcial até ali vigente por força de lei (ou da separação obrigatória, quando aplicável), pena de acarretar problemas futuros aos conviventes ou mesmo a terceiros, além da negativa de registro da convenção no cartório de imóveis– artigo 167, da Lei de Registros Públicos.
Observe-se que a decisão deve alcançar atos anteriormente celebrados, ainda que registrados, inclusive com repercussão no direito sucessório entre os conviventes.
É obrigação dos notários a prestação de assessoria jurídica e garantia de segurança jurídica quanto aos atos de sua responsabilidade, devendo se recusada a prática daqueles que se mostrem contrários às decisões emanadas dos tribunais superiores, a constituir jurisprudência.
(*) Tabelião de Notas, Especialista em Direito Registral Imobiliário
UNIÃO ESTÁVEL, ESCRITURA E REGISTRO
José Hildor Leal (*)
Mesmo que a lei seja única e as normas administrativas tracem parâmetros de conduta para um procedimento minimamente padronizado, muitas vezes tabeliães e registradores interpretam de modo diferente a materialização do ato praticado.
As situações do cotidiano humano se modificam, atropeladas pela dinâmica da vida, para o que as leis devem constantemente se adequar, a exemplo da união estável, até pouco tempo um tabu, hoje uma realidade consolidada, ao ponto de ter o Supremo Tribunal Federal a igualado ao casamento, inclusive no aspecto sucessório.
O casamento continua a exigir o rito formal, enquanto a união estável é fato, e como tal, sequer necessita de contrato escrito para seu reconhecimento e produção de efeitos legais, ressalvadas algumas poucas situações.
No Rio Grande do Sul, desde a vigência do Provimento 01/2020, da Corregedoria-Geral da Justiça, que instituiu a Consolidação Normativa Notarial e Registral, a união estável passou a ser regrada para os efeitos de escritura pública e registro.
No que tange ao registro civil, o artigo 229 dispõe que “é facultativo o registro da união estável prevista nos artigos 1.723 e 1.727 do Código Civil...”. Assim, desde logo se afasta a exigência de registro no livro “E”, mera faculdade dos conviventes, não obrigação.
Com relação ao registro de imóveis, verifica-se lapso relativo à união estável na redação do artigo 500, cujo item III dispõe que a qualificação da pessoa física compreende o estado civil, e sendo casado, o nome do cônjuge, sua qualificação, regime de bens e registro do pacto antenupcial, quando for o caso, assim tendo pecado por omissão.
O dispositivo deveria ser a seguinte:
“O estado civil, e sendo casado ou havendo união estável, o nome do cônjuge ou companheiro, sua qualificação, data do início da convivência, regime de bens e registro do pacto antenupcial ou contrato patrimonial, quando for o caso”.
Melhor disposição se encontra no artigo 522, quando trata do registro e averbação das escrituras e pactos patrimoniais de união estável.
Com relação ao tabelionato de notas, o artigo 868 cuida de modo suscinto a união estável, referindo que “a escritura conterá a qualificação de todas as partes... existência de união estável, indicação do regime de bens, quando pertinente...”.
Desde logo se observa que a informação exigida é sobre haver união estável, não de sua não existência, e assim não sendo procedente a impugnação da escritura, pelo registro de imóveis, pelo fato de não ter constado informação de não ter união estável. A norma somente a exige em caso positivo.
Claro, por cautela e medida de maior clareza deve o tabelião fazer constar a declaração positiva ou negativa, para o que fica a seguinte sugestão de leitura do dispositivo:
“Qualificação de todas as partes, contendo nome, CPF, existência ou não de união estável, e em caso positivo o nome e a qualificação do companheiro, a data de início, a informação quanto a contrato escrito e regime de bens, e em havendo, se declarada por instrumento particular ou público, nesse último caso o tabelionato onde foi feito, número e folha; na ausência de contrato escrito, o regime de bens será da comunhão parcial, nos termos do artigo 1.725, do Código Civil brasileiro, ou da separação obrigatória, conforme artigo 1.641”.
Estas informações são de grande valia, especialmente com relação ao regime de bens que exija registro do pacto ou convenção sobre o regime patrimonial.
Em conclusão:
a) Não há obrigatoriedade de registro do ato declaratório de união estável no livro “E”, do registro civil, sendo mera opção das partes.
b) O tabelião não está obrigado a prestar informação negativa de união estável, embora para maior clareza seja recomendável que o faça.
c) O tabelião deve consignar, nas situações declaradas de união estável, a data de seu início, se há ou não contrato escrito, e em havendo, se público, o tabelionato que o lavrou, data, número e folha, e se particular, a data.
d) Havendo pacto patrimonial, o documento declaratório de união estável deverá acompanhar o traslado da escritura, para efeitos do registro a que se reporta o artigo 167, da Lei dos Registros Públicos.
(*) Tabelião, Especialista em Direito Registral Imobiliário
(*) José Hildor Leal
Ao qualificar a pessoa, nas escrituras públicas, alguns tabeliães adjetivam o estado civil seguido da expressão “maior”, sugerindo idade de 18 anos ou mais. O que se busca aqui discutir é se mesmo sendo verdadeira a afirmação, seja necessária ou não.
É possível afirmar que nem todo sujeito maior é capaz, como os deficientes mentais que não possuem discernimento para a prática dos atos da vida civil, e que nem todo sujeito capaz é maior, a exemplo do emancipado.
Soa estranha a qualificação de um juiz, policial, médico, enfim, seja qual for a profissão que tiver, seguida do adjetivo “maior”. Ora, sequer seria possível o exercício de atividade laboral se maior não fosse.
Diante do exposto, poderia a escritura pública sem referência à maioridade da pessoa ser impugnada quando levada a registro?
Se sim, por qual fundamento jurídico?
O Código Civil brasileiro, no artigo 215, estabelece que a escritura pública, lavrada em notas de tabelião, é documento dotado de fé pública, fazendo prova plena, devendo conter: I - ... II – reconhecimento da identidade e capacidade das partes ... III) nome, nacionalidade, estado civil, profissão, domicílio e residência, etc.
A Lei dos Registros Públicos dispõe no artigo 176, II, que são requisitos da matrícula: 4) o nome, domicílio e nacionalidade do proprietário, bem como: a) tratando-se de pessoa física, o estado civil, a profissão ...
No Estado do Rio Grande do Sul, a Consolidação Normativa Notarial e Registral dispõe, no artigo 384, que a qualificação da pessoa física, no registro de imóveis, compreende o nome completo, a nacionalidade, o estado civil, e sendo casado, o nome do cônjuge e sua qualificação, a profissão, o domicílio e residência, e ainda o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda. Quanto ao ato notarial, o artigo 59, alínea “c”, da CNNR, repete o já citado artigo 215, do Código Civil brasileiro.
Em síntese, a lei exige capacidade, não maioridade, ficando clara a desnecessidade de informação. Ao contrário, a menoridade deve ser sempre informada, para caracterizar a incapacidade do agente, o qual será representado ou assistido, conforme a hipótese de incapacidade relativa ou absoluta.
É pleonasmo qualificar o agente como maior, bastando o reconhecimento da identidade e capacidade jurídica, pelo tabelião.
Por fim, e ainda que a lei exija a profissão das partes nos atos notariais e de registro, resta indubitável que no caso de menor absolutamente incapaz a informação resta prejudicada, até pela proibição constitucional de trabalho infantil, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos de idade.
(*) Tabelião de Notas
NEGÓCIO CONSIGO MESMO E SUBSTALECIMENTO
José Hildor Leal (*)
O Código Civil brasileiro permite que o mandante autorize o mandatário a celebrar contrato consigo mesmo, podendo o procurador alienar o bem objeto da procuração a terceiro, ou ele próprio adquiri-lo.
O que se percebe às vezes, e que deve ser esclarecido, é que não se pode confundir a procuração para negociar consigo mesmo (artigo 117) com a procuração em causa própria (artigo 685), tratando-se de institutos diversos.
Ao tabelião de notas, como agente responsável pela elaboração do mandato público que vise a transmissão de propriedade com faculdade ao mandatário para ele próprio adquirir o bem, interessa observar alguns detalhes importantes para não acarretar invalidade do ato que se originar da outorga, a exemplo da necessária fixação do preço mínimo da venda, em obediência ao artigo 489, do mesmo diploma legal, que fulmina de nulidade a compra e venda por preço estabelecido por uma só das partes.
Em situações assim também é interessante determinar um prazo máximo para cumprimento do mandato, quer pela desvalorização da moeda, quer pela valorização do objeto.
Outra questão importante diz respeito ao substabelecimento do mandato, em tais casos, sendo certo que os poderes poderão sempre ser substabelecidos a terceiro, ainda que o mandante o tenha proibido – artigo 667, § 1º. Essa possibilidade, todavia, não significa, em absoluto, transmissão do direito para negociar consigo mesmo.
Melhor esclarecendo, o procurador que substabelecer o mandato não poderá criar nova permissão de negociar consigo próprio ao substabelecido, uma vez que a autorização para tal decorreu unicamente de faculdade legal do mandante, a qual não se estende ao mandatário, pena de desvirtuar o instituto.
Em conclusão, o substabelecimento é sempre possível, sendo vedada unicamente a transmissão dos poderes para negócio consigo próprio, possível tão somente no mandato de origem, por sua natureza personalíssima e intransmissível.
(*) Tabelião, Especialista em Direito Registral Imobiliário
José Hildor Leal (*)
As escrituras públicas de até não muito tempo traziam a qualificação da pessoa casada, assim mesmo, como casado, sem informar com quem; mais adiante foi exigido que constasse o nome e qualificação do cônjuge, e um pouco depois, o regime de bens.
No caso de pessoas não casadas – solteiros, viúvos, desquitados, separados ou divorciados – bastava o estado civil na qualificação, sem outra adjetivação, o que veio a mudar, no Rio Grande do Sul, com o Provimento 001/2020, da CGJ/RS, quando estabeleceu, no artigo 868, a obrigação dos tabeliães de consignar nas escrituras a existência de união estável.
Embora a norma não determine a informação negativa, para maior segurança deve o tabelião colher a declaração de haver ou não união estável, com o alerta sobre os riscos de falsidade ideológica se a declaração não for verdadeira.
Se a declaração for negativa, basta esta informação. Em sendo positiva, duas outras situações devem ser definidas: se há ou não contrato escrito.
Se não houver, além da completa qualificação do companheiro, deve também ser informado o tempo da união, vigorando entre os companheiros, em regra, o regime da comunhão parcial de bens, de acordo com o artigo 1.725, do Código Civil brasileiro.
Havendo contrato escrito, deve ser informado tratar-se de documento público ou particular, e se for público, o tabelionato onde foi feito, data, livro, número e folhas, além do tempo de convivência e referência ao regime de bens, vigorando o regime legal (comunhão parcial), em regra, se houver omissão, enquanto que na hipótese de escrito particular, igualmente a informação sobre o tempo de união e o regime de bens, e facultativamente, para maior segurança, solicitar o seu registro em títulos e documentos, informando o cartório, livro e folha do registro, ou transcrevê-lo no ato.
Importante observar, também, que tratando-se de contrato escrito com escolha de regime patrimonial que não seja o legal, ou obrigatório, tais como comunhão universal de bens, separação convencional de bens, ou participação final nos aquestos, deve o título causal ser registrado no cartório de imóveis do domicílio dos companheiros, e averbado nas matrículas dos imóveis de um, ou de ambos, em analogia às disposições de lei quanto ao pacto antenupcial (artigo 167 - Lei dos Registros Públicos).
Muito importante ainda observar a separação obrigatória de bens, nos casos de viúvos, separados ou divorciados que não tenham feito partilha dos bens do casamento anterior, pois a união estável em tudo equipara-se ao casamento.
Para quem achar complicado, basta cantar com Amado Batista:
“Eu quero é namorar, eu quero é namorar, sem pensar em me casar”.
(*) Tabelião, Especialista em Direito Registral Imobiliário
José Hildor Leal (*)
Morto o sujeito, os bens deixados transmitem-se de imediato aos sucessores, que devem fazer a partilha no processo de inventário, para o que a lei exige indicação de inventariante, ao qual são atribuídos poderes para representação do espólio.
Vai daí que vem uma pergunta: inventariante necessariamente será um único, ou pode haver dois, ou mais de dois, inclusive?
O tema não é pacífico, conclusão a que se chegou após debate entre profissionais do direito encarregados de notas. Alguns tabeliães já fizeram escrituras de inventário com dois inventariantes ou mais, inclusive sob a argumentação de haver bens localizados em diferentes estados, ou então em casos de inventário conjunto.
Entendo diferente.
Cai por terra a alegação de bens localizados em outras unidades federativas, pois se o inventariado tivesse bens em cada estado se poderia pensar na indicação de até 27 inventariantes, contando o Distrito Federal; também quanto aos inventários cumulativos não se justificaria, pois a unificação busca celeridade, não entrave.
Além disso, a legislação refere-se a inventariante sempre no singular. A lei, quando quer oportunizar mais agentes para atuação o faz no plural, como na permissão de um ou mais testamenteiros, um procurador ou mais de um, e assim por diante.
O artigo 617 do CPC dispõe: “O juiz nomeará inventariante na seguinte ordem: I – o cônjuge ou o companheiro... II – o herdeiro que se achar na posse...”
As opções são de alternância, ou seja, um ou outro, não um e outro. A conjunção faz a diferença. Também, nas raras hipóteses em que a dúvida chegou aos tribunais foi rechaçada.
O Tribunal de Justiça do Paraná já asseverou que “não se mostra razoável a nomeação de dois inventariantes para a administração dos mesmos e indivisos bens, embora diversos os herdeiros...” (Acórdão 12.588, 1ª Câmara Cível, Rel. Des. J. Vidal Coelho, TJPR).
Cabe aqui destacar ainda a decisão monocrática da Ministra Isabel Gallotti, do STJ:
“É realmente mais prático nomear um inventariante do que dois e ter de “dividir a confiança” (se isso fosse possível) ou modular as atribuições e responsabilidades de dois inventariantes, o que poderia contribuir para tumultuar um processo que, na gênese, deve ser essencialmente descomplicado”.
Assim, embora não se perceba nada na lei a justificar dois ou mais inventariantes, também não parece haver vício insanável se isso for feito, desde que eles permaneçam de acordo no curso do inventário; se, contrariamente, houver discordância, e salvo renúncia, estará instaurado o complicador, e o Judiciário terá que ser acionado para resolver a pendenga.
Então, ao contrário de complicar, descompliquemos. Fica bem mais fácil para todos que um só inventariante represente o espólio.
(*) Tabelião, Especialista em Direito Registral Imobiliário
José Hildor Leal (*)
Pelo contrato de permuta as partes ajustam a transferência de um bem por outro bem, exigindo-se escritura pública quando a troca envolve imóveis, ou ao menos um imóvel, que é a hipótese aqui tratada, de interesse de notários e registradores.
A permuta assemelha-se à compra e venda, inclusive pela onerosidade, com a diferença que na compra e venda uma das partes obriga-se a pagar certo preço em dinheiro, enquanto a permuta caracteriza-se pela troca de coisa por coisa, sem envolver dinheiro, salvo os casos de torna para igualar os valores.
O Código Civil brasileiro estabelece que são aplicadas à troca as disposições referentes à compra e venda, com pequenas modificações, e ainda que não constem do texto legal há peculiaridades que distinguem os institutos, a começar pelos efeitos diferenciados que devem ser observados na cessão dos direitos contratuais relativamente à permuta, em comparação à compra e venda, isso porque ainda que a cessão seja por dinheiro, a troca de onde se originaram os direitos e obrigações envolve coisa por coisa, de ambos os lados.
A cessão em promessa de compra e venda afasta o cedente do contrato final, que será celebrado unicamente entre o devedor da obrigação e o cessionário. Ao contrário, a cessão de direitos envolvendo contrato de permuta não afasta o cedente do contrato definitivo, pois somente ele pode concretizar o negócio de permuta, vez que a outra parte não poderá outorgar escritura pública de compra e venda, ao cessionário, porque nada lhe vendeu, e nem de permuta, porque dele nada recebeu em troca.
Isso não significa que a cessão dos direitos contratuais decorrentes de contrato de promessa de permuta não possa ser feita. Pode, e tanto pode que inclusive deve ser dada a registro na matrícula do imóvel respectivo, se a promessa de permuta igualmente estiver registrada.
E o fecho da operação resolve-se por escritura pública de permuta, que pode ser cumulada com compra e venda, em um único ato, envolvendo as três partes, com a permuta das unidades contratadas, e a consequente venda pelo cedente ao cessionário.
Com isso restarão seguros todos. Os devedores recíprocos da obrigação de permuta entre si, e o cessionário, por receber o título da compra e venda relativa ao imóvel que adquiriu a dinheiro, não através de permuta, uma vez que não fez parte dela, e por fim o tabelião, por ter celebrado o ato com a certeza da melhor técnica notarial destinada à garantia, segurança e eficácia do negócio jurídico.
(*) Tabelião, Especialista em Direito Registral Imobiliário
VENDA POR NÃO DONO – SIM OU NÃO
José Hildor Leal (*)
Quem não registra não é dono. Assim estava escrito nas capas das escrituras públicas no início de meu aprendizado em cartório, servindo como alerta ao adquirente do imóvel para que o quanto antes desse o título a registro, sem o que não era dono.
Pois situação interessante, trazida à discussão entre notários e registradores, diz respeito à lavratura de escritura de compra e venda de imóvel por quem possui título ainda pendente de registro. Para a maioria dos tabeliães participantes do debate a resposta é positiva, ou seja, pode ser feita a venda, desde que seja consignado na escritura que somente será ela registrada simultaneamente com a outra.
A justificativa dada refere a Lei dos Registros Públicos – ainda que os tabelionatos de notas não sejam destinatários dela – quando consigna:
“Art. 237. Ainda que o imóvel esteja matriculado, não se fará registro que dependa da apresentação de título anterior, a fim de que se preserve a continuidade do registro”.
Posicionei-me como parte minoritária, justificando especialmente com o que determina a Consolidação Normativa Notarial e Registral, da Corregedoria-Geral da Justiça do Rio Grande do Sul (Provimento 01/2020), ao estabelecer:
“Art. 858. Para a lavratura de escrituras relativas a imóveis, o título anterior deve estar registrado no Registro de Imóveis, a fim de preservar o princípio da continuidade registral”.
A norma traz uma exceção, no seu parágrafo único, quando excepciona-se essa obrigatoriedade na hipótese de negócios simultâneos e sucessivos, vale dizer, se no mesmo tabelionato, no mesmo dia, em atos imediatamente seguintes, aquele que figura como comprador pode, simultaneamente, fazer a venda sem que esteja registrada a aquisição.
Ao referir-se a “obrigatoriedade”, parece que a não observância da norma poderia caracterizar seu descumprimento, assumindo o tabelião os riscos daí resultantes.
Mas, por qual razão estaria inserida na consolidação notarial e registral gaúcha a vedação?
Por certo motivo deve haver, especialmente considerando-se que sua elaboração contou com a participação, além dos membros do órgão judiciário, também de notários e registradores altamente qualificados, indicados pelos diversos órgãos de representação da classe.
Poderia se justificar, talvez, pelo próprio Código Civil brasileiro, ao dispor:
“Art. 1.227. Os direitos reais constituídos, ou transmitidos por ato entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código”.
E o artigo 1.245 esclarece que “transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis”, enquanto o parágrafo primeiro justifica a frase que abriu este breve estudo – quem não registra não é dono - ao referir que “enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel”.
Tanto é verdade que se duas pessoas fizerem a aquisição, em atos separados, o primeiro a registrar sua escritura será o dono do imóvel, ainda que a escritura seja posterior à outra, visto que o domínio dos imóveis somente se transfere com o registro do título (artigo 1.267, do Código Civil brasileiro).
O Supremo Tribunal Federal também já decidiu de fato que “quem não registra não é dono”. (MS 28.160)
Então, se o sujeito não é dono, pela falta do registro, em decorrência do que não possui o domínio, vale dizer, não tem a propriedade, que somente decorre do registro, poderia isso caracterizar “venda a non domino”?
Outros motivos por certo foram examinados na elaboração da norma gaúcha, tais como, por exemplo, eventuais vícios insanáveis quanto ao primeiro título, de modo a obstar seu registro, e por consequência que o segundo seja registrado, dentre tantas outras hipóteses possíveis.
Por tais motivos vejo como temerário o tabelião lavrar escritura pública de imóvel cujo transmitente, ainda que detenha título válido pendente de registro, não esteja legitimado como dono da coisa.
Fica a pergunta: “Quem não é dono pode vender”?
E a resposta, como sempre, deverá estar na lei.
(*) Tabelião, Especialista em Direito Registral Imobiliário
INALIENABILIDADE - DIREITO INDISPONÍVEL
José Hildor Leal (*)
A pergunta lançada à discussão, entre notários e registradores, disse respeito à possibilidade ou não de ser feita alienação de imóvel gravado com cláusula de inalienabilidade, estabelecida por prazo determinado, ainda não vencido o prazo.
A resposta não pode ser outra. Não pode. E não pode porque sendo inalienável, o bem é indisponível, seja vitalícia ou temporária a sua duração.
A cláusula de inalienabilidade, estabelecida em ato gratuito ou testamentário, desde que da parte disponível do doador ou testador, sem ferir a legítima em caso de herdeiros necessários, até porque a legítima é intocável, salvo justa causa, tem como objetivo primordial a proteção do beneficiário, evitando a dissipação do patrimônio.
Há casos em que a cláusula restritiva é vitalícia, ou seja, perdura enquanto viver o recebedor do imóvel, extinguindo-se automaticamente por sua morte, mas também podendo ser temporária, ou a certo prazo, que foi o tema debatido.
É de ser lembrado que o bem gravado de inalienabilidade acarreta cumulativamente impenhorabilidade e incomunicabilidade patrimonial, por força do disposto no artigo 1.911, do Código Civil brasileiro. Em outras palavras, além de impossibilitar a alienação por venda ou promessa de venda, permuta, dação em pagamento e doação – ressalvada a disposição por testamento - também veda a alienação por garantia, como a hipoteca, e ainda não permite que o patrimônio se comunique ao cônjuge ou companheiro, seja qual for o regime de bens adotado pelo casal.
No caso em pauta, a questão versava sobre a intenção do proprietário de doar o imóvel ao único herdeiro necessário, em adiantamento de legítimo, estando vigente o prazo de inalienabilidade indicado no ato originário. A ideia era fazer a escritura com a condição de registro no álbum imobiliário somente após a extinção da cláusula, pelo decurso temporal.
A pergunta não indicava o tempo faltante para o esgotamento do prazo, mas é irrelevante que fosse de um ano ou mais, ou um mês ou um dia; somente vencido o prazo imposto restará cessada a cláusula, permitindo então ao proprietário dispor do imóvel como bem lhe aprouver. Antes não.
Ao notário a quem foi solicitada a escritura, como fiel defensor da lei e obrigado a observar os requisitos de validade e eficácia dos atos sob sua responsabilidade, só cabe a recusa de sua prática, por tratar-se de negócio nulo, sem nenhum efeito jurídico.
Uma única exceção à regra se vislumbra no parágrafo único do artigo 1.911, ao permitir a alienação de bens gravados mediante autorização judicial, desde que o produto da venda seja convertido em outros bens, sobre os quais incidirão as restrições apostas aos primeiros.
Por fim, não se pode confundir inalienabilidade com indisponibilidade, que são institutos diferentes. Um bem inalienável não pode ser alienado. O indisponível, pode.
Mas isso é assunto para outro dia.
(*) Tabelião, Especialista em Direito Registral Imobiliário