A VONTADE DO FALECIDO E O TESTAMENTO

 A VONTADE DO FALECIDO E O TESTAMENTO

               A VONTADE DO FALECIDO E O TESTAMENTO
                              José Hildor Leal (*)
O falecido deixou um testamento determinando que a parte disponível de seu patrimônio, consistente de três imóveis, coubesse a três sobrinhos. Quando o ato foi assinado eram vivos seus pais, únicos herdeiros necessários, motivo pelo qual não lhe foi facultado dispor da totalidade dos bens na ocasião, pois a lei determina que a legítima dos herdeiros necessários não poderá ser incluída no testamento.
Passado um tempo vieram a óbito os pais do testador, que os sucedeu na morte, ficando como herdeiros colaterais dois irmãos.
Diante disso questiona-se: na ausência de herdeiros necessários a herança caberá metade aos herdeiros legítimos, e metade aos herdeiros testamentários, ou deverá pertencer em sua totalidade a estes últimos?
Duas correntes se formaram. Uma, onde me incluo, entendendo que se o testamento dispôs sobre a metade do patrimônio, e não à totalidade dele, deverá caber metade aos irmãos, por sucessão legítima, e a outra metade aos sobrinhos, como herdeiros testamentários.
A tese contrária defendeu que toda a herança pertencerá aos sobrinhos, pela ausência de herdeiros necessários no momento da morte do testador, pois se deixou a disponível e não tem herdeiros necessários, a parte disponível é a totalidade.
E que o artigo 1.850, do Código, esclarece que “para excluir da sucessão herdeiros colaterais, basta que o testador disponha de seu patrimônio sem os contemplar”.
Foi citada inclusive decisão superior em caso similar, no sentido de que o artigo 1.850 havia afastado os colaterais da sucessão, mesmo que a disposição tenha sido quanto a parte disponível, porém não havendo herdeiros necessários no momento da morte do testador, justamente em face do disposto no citado artigo 1.850 (Agravo em Recurso Especial nº 1.309.415 – SP (2018/0145941-0).
A decisão contraria o melhor direito, o que será demonstrado em outra postagem, pois o tema é relevante e merece exame mais aprofundado.
Abre-se aqui parênteses para ressaltar a importância do tabelião na elaboração do testamento. Uma frase lapidar do colega Felipe Leonardo Rodrigues resume a ideia: “A redação é a alma do ato notarial”.
De fato, bastaria o tabelião ter questionado o testador para saber se pretendia afastar os colaterais da sucessão, ou não, e ter deixado clara a sua vontade, esclarecendo que na falta de herdeiros necessários, no momento de sua morte, a herança coubesse toda ela aos herdeiros testamentários. 
Como não houve manifestação inequívoca, clara e precisa, não cabe ao intérprete presumir a real intenção do testador, pena de modificar sua vontade. 
Há que se ter em mente que a vontade do testador é aquela manifestada na outorga do ato, não no momento da morte, quando a situação pode ser diversa.
No primeiro parágrafo deste texto foi informado que o falecido deixou um testamento determinando que a parte disponível de seu patrimônio coubesse a três sobrinhos. Assim, não há que se falar em todo, quando se fala em parte. É importante que se compreenda essa premissa: “quem dispõe de parte não dispõe de tudo, assim como quem dispõe de tudo não dispõe de parte”.
E se o testador dispôs da metade de seu patrimônio, como será possível que a metade seja tudo? 
E a resposta, como sempre, estará na lei e na sua correta interpretação.
Zeno Veloso, comentando o artigo 1.850, sintetiza com sabedoria: “Para excluir da sucessão os herdeiros colaterais, basta que o testador disponha, em favor de terceiros, da totalidade do seu patrimônio” (Código Civil Comentado, coordenação de Ricardo Fiuza).
Destaque-se a última frase: “... da totalidade do seu patrimônio”.
É questão de lógica: se A, que tem herdeiros necessários, no momento da disposição, deixar 1/3 da parte disponível de seu patrimônio a favor B, seu serviçal, mas que venha a falecer sem que existam mais tais herdeiros, por evidente que a herança não caberia toda ela a B, mas sim aquilo que lhe foi destinado, cabendo o restante aos colaterais.
Igualmente, se o mesmo A fizesse o testamento após a morte dos herdeiros necessários, e ainda assim dispusesse de 1/3 a B, não estaria com isso afastando os colaterais da sucessão, o que somente ocorreria de dispusesse de tudo a B.
É isso que estabelece o artigo 1.850.
Ora, pergunta-se: no exemplo aqui discutido acaso o testador dispôs da totalidade do seu patrimônio? Não, não, não. A disposição foi da parte disponível, correspondente à metade do patrimônio. Assim, por força de lei, a outra metade cabe a quem de direito.

“A César o que é de César” é uma frase atribuída a Jesus nos evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos, Lucas), onde se lê: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”.
Em arremate, aos irmãos o que é dos irmãos.

(*) Tabelião, Especialista em Direito Registral Imobiliário

 

A SANTINHA DO DOUTOR ZENO E A INFIDELIDADE CONJUGAL

    A SANTINHA DO DOUTOR ZENO E A INFIDELIDADE CONJUGAL

                    A SANTINHA DO DOUTOR ZENO E A INFIDELIDADE CONJUGAL
                                             José Hildor Leal (*)
Zeno Veloso é um grande jurista brasileiro, dispensando apresentações, e não raro nos brinda com textos que levam à reflexão, como este publicado no Jornal “O Liberal”, de Belém, com o título “Santinha quer excluir fidelidade”. 
O fato é o seguinte: Santinha deseja que o tabelião faça constar na escritura pública de pacto antenupcial, pela qual será adotado o regime da separação de bens no casamento que vai contrair com Luizinho, a condição de que sempre no mês de novembro o casal terá férias conjugais, podendo manter outros romances, inclusive com direito a sexo, sem que isso implique violação aos deveres conjugais.
O notário procurado negou-se a dar curso ao ato, alegando imoralidade e ofensa aos princípios jurídicos superiores, com o que foi ameaçado de denúncia e processo.
Doutor Zeno cita Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald, Rodrigo da Cunha Pereira e Conrado Paulino da Rosa, para os quais as disposições atinentes à fidelidade e práticas sexuais não convencionais seriam permitidas.
Por outro lado ressalta que o art. 1.655, do Código Civil brasileiro, declara nula a convenção ou cláusula que contravenha disposição absoluta de lei, além do Enunciado nº 635, aprovado na VIII Jornada de Direito Civil, dispondo que “O pacto antenupcial e o contrato de convivência podem conter cláusulas existenciais, desde que estas não violem os princípios da dignidade humana, da igualdade entre os cônjuges e da solidariedade familiar”. 
E informa a doutrina de Rolf Madaleno, que entende ineficaz a disposição que admita infidelidade conjugal, além de Fabiana Domingues Cardoso, que em monografia dedicada ao tema lembra Pontes de Miranda, assim como outros autores, para os quais os deveres mínimos dos cônjuges, fixados em lei, não podem ser modificados pelo pacto antenupcial.
E esta é a corrente que acompanho, solidarizando-me com o colega que se recusou a lavrar o pacto com permissão de infidelidade. 
Se a intenção do casal é “pular a cerca” de modo consentido em novembro, ou quando quer que seja, que o façam, mas sem o aval do tabelião.
Por mais que a sociedade evolua e os direitos individuais sejam renovados e relativados, há princípios básicos que não podem ser afastados pela vontade que afronte norma cogente.
Sou adepto da velha expressão latina: “dura lex sed lex”. A lei é dura, mas é lei. 
A Santinha que me perdoe.
 (*) Tabelião, Especialista em Direito Registral Imobiliário

A CAPACIDADE DA VIÚVA

   A CAPACIDADE DA VIÚVA

                                           A CAPACIDADE DA VIÚVA
                                                   José Hildor Leal (*)
As pessoas leigas em termos de lei civil podem estranhar que uma escritura pública traga a informação de que a vendedora, com 15 anos de idade, possui capacidade jurídica plena, sabendo-se que são absolutamente incapazes os menores de 16 anos (Código Civil brasileiro, artigo 3º, I).
Porém, e por aí se começa a explicar, o próprio diploma legal estabelece que cessa a menoridade pelo casamento (artigo 5º, II).
Pois a menina havia casado aos 15 anos, e em seguida passou ao estado de viúva. A escritura tratava justamente da venda de um imóvel havido por herança por morte do cônjuge.
Ainda assim pode causar espécie, porque o artigo 1.517 do código assevera que somente podem casar o homem e a mulher com dezesseis anos.  Como poderia então ter casado aos 15, ou menos?
Acontece que “excepcionalmente será permitido o casamento de quem ainda não alcançou a idade núbil, para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal ou em caso de gravidez” (artigo 1.520).
A moça engravidara, e em razão da lei o juiz autorizou casar-se, impondo o regime da separação de bens, obrigatória no caso (artigo 1.641, III).
E sucedeu que menos de um mês depois ficou viúva. 
Também pode estranhar-se que tenha feito venda de imóvel recebido em herança, pois o artigo 1.829, I, afasta da herança o cônjuge casado pelo regime da separação obrigatória. Mas também há exceção.
O artigo 1.829, III, do mesmo Código, dispõe que se o falecido não deixou descendentes ou ascendentes vivos, a herança cabe inteira para o cônjuge sobrevivente.
Para a pobre viúva, no caso.
(*) Tabelião de Notas, Especialista em Direito Registral Imobiliário

CESSÃO DE MEAÇÃO E USUFRUTO – ADJUDICAÇÃO OU PARTILHA

CESSÃO DE MEAÇÃO E USUFRUTO – ADJUDICAÇÃO OU PARTILHA

         

 

 

              CESSÃO DE MEAÇÃO E USUFRUTO – ADJUDICAÇÃO OU PARTILHA
                                                       * José Hildor Leal
Questão de direito notarial posta à discussão diz respeito à necessidade ou não do meeiro participar da escritura pública de inventário, quando tiver feito cessão com reserva de usufruto.
Caso prático: faleceu A, casado com B, deixando um só filho e um único imóvel de propriedade comum, sendo que B fez cessão de sua meação ao filho, com reserva de usufruto.
A pergunta é se o tabelião deverá fazer o ato como adjudicação, com a presença somente do filho, ou como partilha, com participação também do que reservou usufruto?
Duas respostas se seguiram, uma pela partilha, sob o argumento que não houve transmissão da totalidade da meação, cabendo usufruto ao cedente sobre 50% do imóvel, e nua propriedade ao cessionário sobre esta metade, e propriedade plena sobre a outra metade. E a outra – tese que acompanho - pela adjudicação, sem participação do cedente. 
Justifico. Primeiro, porque houve transmissão da totalidade da meação. O fato de haver reserva de usufruto não diminui o percentual cedido. O herdeiro adjudicará todo o imóvel, sendo que 50% em pagamento da legítima, e 50% como pagamento da cessão, com a ressalva de usufruto sobre essa metade. 
Certo é que com a cessão restou um único sucessor. Não é pela escritura de inventário que se vai constituir usufruto à cedente; o usufruto já foi reservado através da escritura pública de cessão. 
Somente seria caso de partilha se ao contrário de cessão fosse seguido o modelo ditado pelo artigo 518, da Consolidação Normativa Notarial e Registral – Provimento 01/2020, da CGJ/RS, que assim dispõe:
"Os pagamentos a título de sucessão legal, meação ou legado poderão ser integralizados através de direito real de usufruto vitalício, sem prejuízo do pagamento da nua propriedade a quem de direito a receba ".
As situações são diferentes. Na primeira, ocorrendo cessão, seja gratuita ou onerosa, com ou sem reserva de usufruto, o cedente afasta-se da sucessão, ainda que tenha se reservado usufruto, havendo adjudicação pelo único sucessor. 
Na segunda, o meeiro recebe em pagamento de sua meação justamente o usufruto, sendo então caso de partilha, pela qual o herdeiro recebe em pagamento de sua legítima não a metade do imóvel em plena propriedade, mas a totalidade dele em nua propriedade; ao meeiro, ao contrário de ter o pagamento de sua meação sobre 50% do imóvel, caberá usufruto sobre 100% dele.
Voltando à pergunta que deu origem ao que trata o texto, ou seja, cessão de meação afasta o meeiro da partilha, ou não, é possível afirmar ainda que sim, que afasta, uma vez que com a cessão resta o filho com direito à totalidade da herança, não havendo partilha, consoante o artigo 26 da Resolução 35, do Conselho Nacional de Justiça:
Havendo um só herdeiro, maior e capaz, com direito à totalidade da herança, não haverá partilha, lavrando-se a escritura de inventário e adjudicação dos bens.
E mais, uma vez feita a cessão, opera-se a transmissão do direito, observada a reserva, tanto que se o cedente viesse a falecer em seguida, não haveria prejuízo à adjudicação, uma vez que o usufruto não é suscetível de transmissão causa mortis.
É possível afirmar que havendo cessão total, com ou sem reserva usufruto, o cedente afasta-se da partilha, devendo a escritura de inventário, na última hipótese, fazer ressalva à reserva. Se assim não fosse não poderia também o nu proprietário alienar o usufruto sem a participação do usufrutuário, e é sabido por todos quanto à desnecessidade.
Por fim, ainda que possa o tabelião entender que o cedente deva participar da escritura pública de inventário, na condição de usufrutuário, mesmo assim certamente o ato será de adjudicação, não de partilha.
*Notário, Especialista em Direito Registral Imobiliário

 

 

 

O REAL CAMPEÃO DO MUNDO

O REAL CAMPEÃO DO MUNDO

                                  O REAL CAMPEÃO DO MUNDO
                                                      José Hildor Leal (*)
Dia destes ouvi atentamente um relato nostálgico do consagrado professor Lênio Streck, em Podcast.  
Longe de tratar de Direito Constitucional, do qual é mestre, atacou na área do futebol, com reminiscências adolescentes da época em que foi goleiro amador do Avenida, de Agudo, tendo atuado no histórico jogo com o profissional do Cachoeira, participante do Campeonato Gaúcho, e que havia pouco ganhara do Internacional, de Porto Alegre, o qual por seu turno vencera o campeão mundial Peñarol, do Uruguai, de modo que considerou ter sido o Avenida o verdadeiro campeão do mundo.
Acostumado a ler os ensinamentos do meu quase vizinho de infância, pois Agudo e Cerro Branco já faziam limite desde os tempos em que foram respectivamente o 6º e o 7º distritos de Cachoeira do Sul, foi emocionante ouvir suas lembranças juvenis.
Mas há um detalhe esquecido por ele – e não se pode culpá-lo, afinal lá se vão quase 50 anos – que deve ser esclarecido, por medida de justiça.
Logo após aquele jogo contra o Cachoeira, o Avenida foi batido pelo Real Associação Esportiva, de Cerro Branco, com a escalação que até hoje sei de cor e salteado: Dáurio Faber, Ireno Schultz, Irineu Ancheta Sehnem, Herbert Schwantz e Levindo Lang; Jalmar Sabin, Neco Schwantz e eu, Bernardino da Silva, Sargento Garcia e Neguinho Ferreira. 
Reinaldo (Tinho) Saueressig, nosso treinador, alertara na preleção que além de bater o Cachoeira, o Avenida vinha de folgada vitória sobre o Canarinho, de Rincão da Porta, atual Paraíso do Sul, do afamado goleiro Getúlio Schiefelbein.
Lembro como se fosse ontem, afinal, moleque ainda, foi um dos primeiros jogos que disputei. Já bem no início o adversário mostrou a que veio, abrindo o placar. Não nos intimidamos, e em seguida igualamos o marcador. Com os dois times querendo vencer eram os goleiros que operavam milagres de lado a lado, e quando o empate parecia definitivo, um pênalti decidiu a partida. 
Com a vitória sobre o Avenida pode se dizer que o real campeão do mundo foi o Real, que derrotou o Avenida, que derrubara o Cachoeira, que ganhara do Internacional, que tinha vencido o Peñarol. Ao menos assim nos sentimos naquele final de tarde.
Feito o reparo, é também preciso dizer que o futebol perdeu um grande atleta para as letras jurídicas, que ganharam um exponencial de intenso brilho.
Dr. Lênio Luiz Streck é um dos maiores juristas deste País.

(*) Tabelião

ANULABILIDADE E VALIDADE DA ALIENAÇÃO SEM ANUÊNCIA CONJUGAL E VENDA DE ASCENDENTE A DESCENDENTE – ESCRITURA PÚBLICA E REGISTRO

ANULABILIDADE E VALIDADE DA ALIENAÇÃO SEM ANUÊNCIA CONJUGAL E VENDA DE ASCENDENTE A DESCENDENTE – ESCRITURA PÚBLICA E REGISTRO

 

 

 

 

 

 

ANULABILIDADE E VALIDADE DA ALIENAÇÃO SEM ANUÊNCIA CONJUGAL E VENDA DE ASCENDENTE A DESCENDENTE – ESCRITURA PÚBLICA

E REGISTRO

 

 

 

José Hildor Leal[1]

 

RESUMO: Trata o presente trabalho de verificar a possibilidade ou não de ser lavrada escritura pública de alienação de bens imóveis, pelo tabelião de notas, e o seu ingresso no registro predial, nas hipóteses de bens incomunicáveis, alienados pelo seu proprietário exclusivo, sem vênia conjugal, e ainda sobre a venda de ascendente para descendente, sem consentimento dos demais descendentes, ou do cônjuge do alienante, em razão de haver conflito de interpretação, assim no âmbito notarial quanto no de registros. Busca-se, ao longo do estudo, tornar compreensíveis os institutos, adentrando na anulabilidade dos atos decorrentes dessa prática e sua admissibilidade no plano da validade e da eficácia.

 

PALAVRAS-CHAVE: Alienação. Cônjuge. Ascendente. Descendente. Consentimento. Validade. Anulabilidade.

           

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Alienação e consentimento conjugal; 3. Venda de ascendente a descendente; 4. Prazo para anulação; 5. Validade; 6. Conclusão.

 

1 INTRODUÇÃO

 

A regra, no ordenamento jurídico pátrio, é que nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis.

 

Há entendimento de alguns profissionais do direito, afetos aos serviços cartorários, quanto à inviabilidade da celebração do contrato sem o assentimento conjugal, exceto se o regime patrimonial for o da absoluta separação de bens.

 

 Outros, por seu turno, defendem a prática do ato, entendendo-o lícito e possível, desde que devidamente orientadas as partes quanto aos riscos decorrentes de possível anulabilidade.

 

             Do mesmo modo, diverge-se sobre acharem-se impedidos ou não, o tabelião de notas de lavrar, e o registro predial de acolher, escritura pública de venda de ascendente a descendente, sem o consentimento dos demais descendentes e do cônjuge, passível também de ser anulada.

 

O estudo que ora se desenvolve tem por objetivo verificar se é ou não legal a lavratura, pelos tabeliães de notas, de escritura pública de alienação de imóveis nas condições verificadas, e o seu ingresso no fólio real, desde que condicionadas a certas particularidades.

 

            Para tanto, haverá de se observar primeiro, frente ao ordenamento jurídico, em especial no plano da validade e da existência, se o negócio desta natureza é lícito ou ilícito, nulo ou anulável, possível ou não, fazendo-se o cotejo dos seus diferentes efeitos, e por quais razões os serviços notariais e de registros podem lhe dar guarida, ou simplesmente recusar a sua feitura e registro.

 

             Parte-se da premissa que os profissionais do direito, afetos aos serviços cartorários, têm conhecimento, senão pleno, ao menos necessário, do sistema jurídico em toda a sua complexidade, sendo inadmissível, nos dias atuais, que notários e registradores não sejam aptos a fazer as suas próprias conclusões a partir do texto legal, e inaceitável que sigam, sem discussão de mérito, ensinamentos doutrinários evasivos, sem maior aprofundamento frente às inovações trazidas pela legislação vigente, e que inclusive em certos casos desvirtuam o real sentido de suas disposições, ou ainda que fogem, por comodismo ou insegurança no trato da matéria, a um exame mais fecundo dos temas ligados aos serviços notariais e de registros, o mesmo se dando em relação à jurisprudência pretérita, não aplicável nos dias atuais.

 

Impõe-se, para atender o modelo posto, uma visão moderna, eclética, corajosa, lúcida, enfim uma atividade criadora, nem por isso esquecendo a prudência, a que se refere Ricardo Dip[2], como compete a um profissional da área, e ninguém melhor do que ele, notário ou registrador, pelo fato de vivenciar, no seu dia-a-dia, em razão de seu ofício, as inúmeras situações que clamam por solução, para dar ou negar-lhes curso, conforme o caso, adequando o fato à norma, sem esquecer que ao notário compete, por disposição legal “formalizar juridicamente a vontade das partes” (art. 6º, I – Lei 8.935/94), sendo, ainda, conselheiro imparcial.

 

            Certamente é mais cômodo deixar de praticar o ato complexo sob a alegação de que o negócio não pode ser feito, sem que, no entanto, seja procedida uma abrangente e necessária avaliação ao caso concreto e à possível solução a lhe ser dada. Verifica-se às vezes uma interpretação restrita, limitada, das disposições legais, como remanescente de um modelo arcaico, através de uma leitura eivada de conservadorismo e de temores, esquecendo-se que o direito é dinâmico e deixando-se assim de dar prática a atos perfeitamente possíveis.

 

            Lenio Luiz Streck[3] bem sintetiza que

 

já há algum tempo venho denunciando a crise da dogmática jurídica. Tenho falado de uma crise de paradigmas de dupla face: uma crise de modelo e uma crise de caráter hermenêutico (compreensivo). De um lado, os operadores do direito continuam reféns de uma crise emanada da tradição liberal-individualista-normativista; de outro, permanecem mergulhados na crise dos paradigmas aristotélico-tomista e da filosofia da consciência. O resultado dessas crises é um Direito alienado da sociedade, questão que assume foros de dramaticidade se compararmos ao texto da Constituição com as promessas incumpridas da modernidade.

 

            O Direito evoluiu, não simplesmente porque, por vontade do legislador, novas regras surgiram, mas pela razão que surgiram novas regras por imposição da própria sociedade moderna. O velho brocardo latino “ubi societas, ibi jus”, a significar que onde está a sociedade, ali também está o direito, permanece válido e atual, porém inserido em outro momento histórico, em face da acelerada evolução dos povos. Os tempos mudaram, os costumes se alteraram, e aquilo que ontem era tido como impossível de se praticar é hoje fato curial, ensejando com isso que hodiernamente se tenha um novo enfoque, um outro modo de ver, interpretar e celebrar o direito.

 

2 ALIENAÇÃO E CONSENTIMENTO CONJUGAL

 

 

 Viu-se que a regra geral é pela necessidade da vênia conjugal na alienação de bens imóveis, parecendo haver, num primeiro momento, uma única exceção a permitir a sua dispensa. No entanto, a leitura mais abrangente sobre o tema vai remeter a outras várias.

 

Para melhor acompanhamento das digressões feitas, é fundamental a leitura das disposições pertinentes, postas pelo Código Civil brasileiro:

 

Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta:

I – alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis;

II – pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens ou direitos;

III – prestar fiança ou aval;

IV – fazer doação, não sendo remuneratória, de bens comuns, ou dos que possam integrar futura meação.

Parágrafo único. São válidas as doações nupciais feitas aos filhos quando casarem ou estabelecerem economia separada.

 

            Antes de ingressar no tema propriamente dito, impõe-se esclarecer que o dispositivo trata dos bens particulares, incomunicáveis, ou exclusivos de cada cônjuge, posto que nas hipóteses de venda, doação ou de qualquer outra forma de alienação de bens comuns, não será caso de autorização, mas de participação conjunta e igualitária no ato, isto é, não estará apenas um dos cônjuges alienando e outro meramente consentindo - ambos estarão outorgando, alienando. E se ambos alienam, como proprietários, o bem comum, não há o que se discutir: é evidente não ser possível que um só o faça, pena de nulidade, não esquecendo que o ato nulo, ao contrário do ato anulável, não tem convalidação. Diversamente, se forem bens particulares, exclusivos de um só dos cônjuges, logo incomunicáveis, então é efetivamente caso de mera autorização, onde apenas um deles aliena e o outro simplesmente expressa a sua concordância, e não havendo assentimento o ato não é nulo, mas anulável, podendo ou não ser convalidado pelo decurso de tempo ou ulterior aprovação conjugal, ou ainda por decisão jurisdicional, reiterando-se que o ato nulo nasce morto, não vale, enquanto que o anulável nasce válido, podendo ou não assim se manter.

 

            A única conclusão lógica a que se pode chegar, portanto, é que o dispositivo em comento diz respeito unicamente aos bens incomunicáveis, não se aplicando aos bens comuns, e jamais para casais que tenham adotado o regime da comunhão universal de bens, salvo, nesse caso, os bens excluídos da comunhão (art. 1.668 CC). Logo, o artigo refere-se exclusivamente aos bens incomunicáveis, singulares, exclusivos.

 

            Feita esta necessária distinção, passa-se a verificar as exceções objeto de estudo, a permitir a celebração do contrato sem a vênia conjugal.

 

Embora o código pareça imperativo no sentido de proibição, ao dispor que “nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro...”, induzindo a crer que o ato não pode ser feito de forma alguma, se vai verificar que não é exatamente assim, havendo além da exceção pertinente à absoluta separação de bens, outras mais.

 

 A primeira delas vem claramente contida no caput do artigo em comento, ao permitir que se pratique os atos a que menciona nos respectivos incisos e no seu parágrafo único, desde que o regime patrimonial seja o da separação absoluta.

 

Para isso não basta, portanto, que se tenha simplesmente pactuado a separação de bens, e nem que esta tenha se dado por imposição de lei (regime da separação legal ou obrigatória). Exige a lei que na escritura pública de pacto antenupcial exista cláusula prescrevendo a separação absoluta, não mera separação, de tal modo não poderá haver comunhão de aqüestos para que se possibilite a dispensa de outorga, entendo-se que bens aqüestos são aqueles adquiridos a título oneroso, na vigência da sociedade conjugal, quando se presume a comunicabilidade, a qual, para ser ilidida, necessita que se tenha pactuado de forma diversa na convenção; ou, ainda, desde que não se trate de bens havidos em sub-rogação de patrimônio exclusivo, assim declarado no título aquisitivo.

 

            Então, para que ocorra a exceção prevista no caput do art. 1.647, a escritura de pacto antenupcial deverá conter expressa disposição no sentido da mais absoluta separação de bens, presentes e futuros, inclusive os que forem havidos a título oneroso, na vigência do consórcio, ainda que tanto se pudesse entender implícito no art. 1.687. Nas hipóteses de aquisição conjunta, em nome de ambos, os bens assim adquiridos serão tidos e possuídos em condomínio, não em comunhão de aqüestos.

 

Portanto, em todos os demais regimes patrimoniais que não o da separação absoluta de bens, se faz necessário, via de regra, o consentimento conjugal na alienação de bens particulares. Porém, o descumprimento do preceito não torna o ato nulo, mas simplesmente anulável, motivo pelo qual não deve o tabelião de notas fazer vezes de juiz da causa e recusar a sua lavratura, pois a lei não proíbe que seja feita a contratação, e nem o registrador obstar o seu registro, por não haver amparo legal para a negativa. Pelo contrário, o ato deve ser feito pelo tabelião e registrado no serviço imobiliário, tomando-se para tanto as cautelas necessárias.

 

            O que cabe ao notário, com toda a certeza, é prevenir litígios, orientando quanto às conseqüências do ato que as partes pretendam produzir, esclarecendo-lhes sobre a anulabilidade decorrente da falta de assentimento, aconselhando-as, com imparcialidade, a não praticá-lo. Se, inobstante, mantiverem assim mesmo a firme intenção de levar a cabo o empreendimento, caber-lhe-á formalizar juridicamente tal disposição, devendo inserir texto na escritura de que fez os necessários esclarecimentos, colhendo ainda, no próprio título, declaração das partes de que assumem o risco contratual, estando cientes das disposições contidas nos dispositivos tais. Ao registrador, por sua vez, cabe fazer o registro, e por medida de prudência, com a menção de tratar-se de negócio resolúvel, aos efeitos de publicidade e conhecimento de terceiros.

 

            A segunda exceção se verifica no inciso IV do artigo estudado, ao proibir apenas a doação não remuneratória, e permitindo conseqüentemente a doação remuneratória, indo até mais longe, nessa hipótese, ao tratar inclusive de bens comuns, ou dos que possam integrar futura meação.

 

            A terceira vem inserta no parágrafo único, ao estabelecer que são válidas as doações nupciais feitas aos filhos quando casarem ou estabelecerem economia separada, independente de assentimento conjugal.

 

            A quarta exceção à regra reside na possibilidade de suprimento da outorga, pelo juiz, quando um dos cônjuges a denegue sem motivo justo, ou lhe seja impossível concedê-la (art. 1.648).

 

            A quinta, quando estabelece o código, no art. 1.649, que o ato é anulável, admitindo que seja feito, mas cominando uma pena se não houver o assentimento, qual seja a sua anulabilidade, marcando inclusive prazo decadencial para ser requerida a invalidade, findo o qual restará convalidado. Ressalte-se, ainda, que o pedido de anulação somente poderá ser proposto pelo cônjuge que não se manifestou no ato, ou por seus herdeiros, no prazo de dois anos depois de terminada a sociedade conjugal, e permitindo ainda, no parágrafo único, posterior aprovação ao ato, ainda que por documento particular autenticado, vale dizer, com firma reconhecida.

 

            A sexta exceção quanto ao consentimento conjugal se verifica quando da alienação, por venda, de ascendente a descendente, nesse caso dispensando a anuência desde que o regime de bens seja da separação obrigatória (art. 496, par. único), havendo portanto uma inversão à regra da separação convencional absoluta.

 

            Outra: no pacto antenupcial que adotar o regime da participação final nos aqüestos, poder-se-á convencionar a livre disposição dos bens imóveis, desde que particulares (art. 1.656). Assim, uma vez convencionada, não haverá necessidade de manifestação conjugal para alienação de bens imóveis.

 

            Embasada juridicamente, é altamente salutar, moderna e reveladora de louvável interesse ao estudo e dedicação às causas que lhe são submetidas, sendo merecedora de grifo, como se faz, a decisão tomada pelo Dr. Venício Antônio de Paula Salles, Juiz de Direito da 1ª Vara dos Registros Públicos de São Paulo, prolatada nos autos do Processo nº 000.04.028316-0[4]:

 

Ementa não oficial. O Novo Código Civil não perpetuou a necessidade do consentimento do cônjuge na alienação de bens incomunicáveis. As alienações nos termos da nova lei poderão prescindir de tal formalidade.

 

             A ementa, por si só, dispensa maiores comentários, resumindo em poucas linhas uma verdade incontestável.

 

 Como o código é recente, não se acha ainda maior volume de decisões judiciais ou doutrina nesse sentido. A lógica interpretativa, porém, leva a crer que brevemente não restará dúvida quanto a ser possível a contratação sem consentimento do cônjuge, tratando-se de bem exclusivo, embora passível de anulabilidade, a critério do juiz de eventual causa, na aferição dos motivos, sendo certo que não basta ao cônjuge preterido no assentimento requerer a anulação do ato para ter sucesso na empreitada, tendo isso sim o dever de demonstrar prejuízo ou de que o bem não era de propriedade exclusiva do alienante. Logo, o ato é anulável se houver vício; caso contrário, ao juiz caberá reconhece-lo válido.

 

Evidencia-se, e assim tem sido reiterado pelos tribunais superiores, que “a lei não pode ser interpretada em tiras”, pois se trata ela de um conjunto harmônico, entrelaçado em seus diversos dispositivos, como elos de uma única corrente, chamada sistema, um a formar e informar ao outro, ao mesmo tempo com independência e subordinação recíprocas.

 

3 VENDA DE ASCENDENTE A DESCENDENTE

 

             Da mesma forma como deve o cônjuge preterido de anuir demonstrar prejuízo ou vício para pleitear anulação da alienação feita por seu consorte, pena de não obter êxito em seu intento, também o descendente que não consentiu na venda do ascendente a outro descendente impõe-se igualmente fazê-lo, sendo que a jurisprudência, assim como os ensinamentos doutrinários, aplicáveis a esta espécie podem ser utilizados, por analogia, também ao primeiro caso, por tratarem, ambos, de consentimento vinculado à anulação.

 

Arnaldo Rizzardo[5] ministra que:

 

é indispensável a ocorrência de prejuízo aos demais herdeiros, como o que se chega à existência da fraude. A mera venda não importa em anulabilidade, se real o negócio, e condizente o valor pago ao preço verdadeiro.

 

Continuando, o doutrinador cita Jesualdo Eduardo de Almeida Júnior, ao entender que o simples fato de não ter existido a concordância dos demais herdeiros, não retiraria, de per si, a validade do negócio, sendo imprescindível, pois, que se prove o consilium fraudis entre o alienante ascendente e o comprador descendente.

 

E arremata: “A fraude deve ser provada. Jamais se presume”.

 

Discutia-se então, na vigência do código revogado, se a venda de ascendente para descendente, sem o consentimento dos demais descendentes, era nula ou anulável. De fato, o Código Civil brasileiro de 1916 preceituava, em seu art. 1.132, que “Os ascendentes não podem vender as descendentes, sem que os outros descendentes expressamente consintam”.

 

            O novo código, além de exigir também agora a anuência do cônjuge do vendedor, para alienação ao descendente, exceto no regime da separação legal (obrigatória) de bens, acabou com a polêmica, declarando simplesmente anulável o ato (art. 496).

 

            Antônio Albergaria Pereira[6], ícone do notariado brasileiro, ainda na vigência do antigo código, quando então se polemizava entre a nulidade ou a anulabilidade da venda de ascendente a descendente sem o consentimento dos demais, já defendia, com arrojo e sabedoria, ser possível a lavratura e o registro do ato assim feito, esclarecendo que:

 

alguns notários recusam acolher em suas notas, escritura de venda e compra, pela qual os pais vendem a um filho determinado imóvel sem anuência dos demais descendentes. Tal recusa repousa no art. 1.132 do Código Civil. Para nós, essa recusa improcede, pois, com ela, o notário adentra numa área que só ao juiz cabe apreciar, ou seja, constatar efetivamente se a venda do imóvel não está mascarando uma doação, prejudicando a igualdade das legítimas dos demais descendentes. A área do notário e do oficial registrador é eminentemente e exclusivamente objetiva. Voltamos novamente ao assunto, não para ensinar quem quer que seja, muito menos para demover aqueles que recusam a lavratura da escritura, mas tão somente para justificar a validade do ato daquele notário que lavrar escritura dessa natureza. Não está ele cometendo uma irregularidade funcional, ante o que o Superior Tribunal de Justiça decidiu ao apreciar o Resp 977-0 pela sua 4ª Turma, cuja ementa é do teor seguinte: “Sem embargo das respeitabilíssimas opiniões em contrário, na exegese do art. 1.132 do CC tem-se por anulável o ato da venda de bem a descendente sem o consentimento dos demais, uma vez: a) que a declaração de invalidade depende da iniciativa dos interessados; b) porque viável a sua confirmação; c) porque não se invalidará o ato se provado que justo e real o preço pago pelo descendente.” Cf. RT.717/259.

           

            Passada uma década do ensinamento do tabelião paulista, e já vigente o novo Código Civil, vem novamente o Dr. Albergaria[7] trazer os seus ensinamentos, ao discorrer sobre a compra e venda de ascendente para descendente, assim expondo:

 

o notário não está impedido, e nem comete irregularidade funcional alguma, se lavrar uma escritura de venda e compra de um imóvel na qual figuram como outorgantes os pais do filho, sem a concordância dos outros, se existirem.

 

O que antes se discutia, hoje é pacífico, em razão da nova redação do dispositivo legal, no código vigente, através do art. 496: “É anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido”. O parágrafo único dispensa o consentimento conjugal se o regime de bens for o da separação obrigatória.

 

            Mas, mesmo assim, persiste para alguns a idéia de não ser possível patricar o ato sem a anuência dos demais descendentes.

 

            Luiz Guilherme Loureiro[8] colaciona que

 

há divergência na doutrina sobre a possibilidade de lavratura e registro de escritura de compra e venda de imóvel sem a anuência de todos os descendentes e do cônjuge. Para alguns, o notário não deve lavrar tal escritura, pois deve velar pela validade do negócio jurídico. Para outros, são possíveis a lavratura e o registro da escritura, porque se trata de anulabilidade e não de nulidade. Não está em jogo o interesse da sociedade, mas sim o do particular. Cabe a este, querendo, anular o contrato. Não o fazendo no prazo decadencial previsto em lei, a compra e venda é considerada válida, não mais podendo ser impugnada pelo interessado. Esta última posição é a prevalente: a jurisprudência do Conselho Superior da Magistratura aponta para o descabimento da recusa do registro de escritura de compra e venda de imóvel de ascendente a descendente em que falte o consentimento de algum dos demais descendentes.

 

            Importante refletir com relação a esta última parte: “A jurisprudência do Conselho Superior da Magistratura aponta para o descabimento da recusa do registro...”.

 

            Com todo respeito às opiniões contrárias, não há como negar o evidente.

 

Pode-se argumentar, ainda, que seria possível então, da mesma forma, entender-se viável a lavratura de escritura, pela qual um menor, relativamente incapaz, alienasse bens, posto que o art. 171 do Código Civil expressa que é apenas anulável o negócio jurídico por incapacidade relativa do agente.

 

            A situação, no entanto, não é a mesma, pois envolve questão de capacidade jurídica.

 

A leitura do artigo 171 tem que ser feita em conjunto com o art. 104, ao dispor, este último, que a validade do negócio jurídico requer agente capaz. E ao referir-se a agente capaz, o código não faz distinção entre ser absoluta ou relativa a incapacidade, sendo de considerar-se, assim, que abrange ambas as espécies, e logo padecendo de invalidade o ato celebrado que por menor, ainda que relativamente capaz.

 

            Desse modo, em se tratando de negócio envolvendo menores, entende-se que não deve o tabelião de notas praticar o ato, e tampouco o registro de imóveis acolhe-lo, salvo se houver alvará de autorização do juiz a permitir que o menor faça a alienação pretendida.

 

4 PRAZO PARA ANULAÇÃO

 

            Praticado o ato, seja de alienação de bens particulares sem vênia conjugal, seja de venda de ascendente a descendente sem consentimento dos demais herdeiros, o prazo para requerer a sua anulação é decadencial, de dois anos.

 

Para o caso de propositura de ação visando a anulação da alienação feita pelo cônjuge sem anuência do outro, o prazo deverá ser contado do término da sociedade conjugal, conforme preceitua o art. 1.649: “A falta de autorização, não suprida pelo juiz, quando necessária (art. 1.647), tornará anulável o ato praticado, podendo o outro cônjuge pleitear-lhe a anulação, até dois anos depois de terminada a sociedade conjugal”.

 

Deve-se entender por terminada a sociedade conjugal, salvo melhor juízo, a partir da sentença que homologar a separação, ou do seu trânsito em julgado. Sendo recente o código e não havendo ainda decisões nesse sentido, haverá que se aguardar a posição jurisprudencial, que poderá trazer entendimento diverso.

 

No entanto, há vasta jurisprudência declinando no sentido que a separação de fato é suficiente para a incomunicabilidade do patrimônio havido por um só dos cônjuges ainda que no estado de casado, qualquer que seja o regime de bens.

 

Silmara Juny Chinelato[9] cita o acórdão da 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, relator o Desembargador Silvério Ribeiro, estampada na RJTJSP, 135:10, do qual transcreve:

 

...não coaduna com os princípios de Justiça efetuar a partilha de patrimônio auferido por apenas um dos cônjuges, sem ajuda do consorte, em razão de separação de fato prolongada, situação que geraria enriquecimento ilícito àquele que de forma alguma não teria contribuído para a geração de riqueza. O fundamental no regime da comunhão de bens é o animus societatis e a mútua contribuição para a formação de um patrimônio comum. Portanto, sem a idéia de sociedade e sem a união de esforços do casal para a formação desse patrimônio, afigurar-se-ia injusto, ilícito e imoral proceder ao partilhamento de bens conseguidos por um só dos cônjuges, estando o outro afastado da luta para a aquisição dos mesmos.

 

No mesmo sentido, o acórdão do egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, inserto na RJTJSP, São Paulo, 114:102, relator o Desembargador Alves Braga, e acórdão do mesmo Tribunal, RJTJSP, 141:82, dentre outros.

 

Para a hipótese de anulação da venda de ascendente a descendente, tinha-se, na vigência da lei anterior, que o prazo para a anulação era de 20 anos, conforme a Súmula 494 do STF [10].

 

Revogada a súmula pelo novo código, o prazo decadencial é agora de dois anos, com fundamento no art. 179, findo o qual, não requerida, ou requerida e não obtida, convalescerá o negócio feito.

 

            Efetivamente, dispõe o citado artigo 179 que “Quando a lei dispuser que determinado ato é anulável, sem estabelecer prazo para pleitear-se a anulação, será este de dois anos, a contar da data da conclusão do ato”.

 

            Tem-se que a conclusão do ato ocorre com o registro na tábula imobiliária. Não é outro o entendimento de Arnaldo Rizzardo[11]:

 

O Código de 2002 não é propriamente omisso, pois, no seu art. 179, previu a decadência, que se dá em dois anos, para todos os atos ou negócios anuláveis, sem estabelecer prazo para pleitear a anulação... Considera-se realizado o ato com o registro imobiliário da escritura ou do contrato. Se não efetuada esta providência, inicia o lapso temporal na data do conhecimento da venda pelos demais herdeiros ou pelo cônjuge sobrevivente.

 

            Nos dois casos estudados a lei dispõe que o ato é anulável. A diferença é que um deles deve ter o prazo contado a partir do registro do ato, ou ainda da data do conhecimento do fato, enquanto que o outro a partir da sentença que tenha posto fim à sociedade conjugal, ou do seu trânsito em julgado, conforme venha a se firmar futura jurisprudência, que poderá ter ainda entendimento diverso, a exemplo de contar-se o prazo desde a separação de fato.

 

5 VALIDADE

 

            O Código Civil brasileiro estabelece, no art. 104, que a validade do negócio jurídico requer agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável, e forma prescrita ou não defesa em lei.

 

            Por aí se verifica que os negócios de que cuida este estudo, quais sejam a alienação de bens incomunicáveis feita por um dos cônjuges sem assentimento do outro, assim como a venda de ascendente para descendente sem o consentimento dos demais descendentes, ou do cônjuge, tratam-se de atos válidos, muito embora o risco da anulação, que poderá ou não ocorrer.

 

Sendo assim, não se vislumbra nenhum tipo de impedimento ético ou profissional que iniba o tabelião de lavrar escrituras públicas de tal natureza, e tampouco o registro de imóveis de lhes dar acolhida, observadas sempre as cautelas referidas inicialmente, diferentemente da alienação feita pelo menor, que não será válida por incapacidade do agente.

 

            O melhor entendimento leva a crer que não devem, notários e registradores, uma vez prestados os esclarecimentos necessários quanto aos riscos advindos da contratação assim feita, especialmente ao maior interessado no negócio e em sua segurança, que é o adquirente, recusar a feitura e o registro de ato válido, feito por agente capaz, cujo objeto seja lícito, possível, determinado ou determinável, devendo para tanto dar ao ato a forma prescrita em lei, que não o tem como defeso.

 

6 CONCLUSÃO

 

             Feita a análise das temáticas a que se propôs o presente estudo, resulta claro que é válida, muito embora anulável, a alienação de bens exclusivos (incomunicáveis) feita por pessoa casada sem o assentimento conjugal, independente do regime de bens, e assim também a venda de ascendente a descendente sem o consentimento dos demais descendentes, sendo que eventual invalidade somente será declarada havendo vício ou justa causa, a requerimento exclusivo do interessado que deixou de anuir, não podendo ser argüido pelo Ministério Público e tampouco reconhecido de ofício pelo juiz, por não haver prejuízo à sociedade.

 

                        Destarte, tendo-se que o ato é válido, não comporta recusa do tabelião de notas em lavrá-lo, e tampouco do oficial de registro de imóveis em acolhê-lo, uma vez que eventual anulabilidade deverá ser objeto de apreciação pelo poder judiciário, devendo o primeiro formalizar juridicamente a vontade das partes e o segundo efetuar o registro, não lhes competindo impedir a realização de atos válidos, ou deixar de praticá-los, desde que não contrários à ordem pública, e uma vez adotadas as medidas assecuratórias das providências tomadas, como a inserção, nos documentos lavrados, acerca do conhecimento dado aos seus participantes e de suas implicações legais.

 

            A dinâmica do direito exige constante aprendizado, mudanças de conceitos, agilidade de decisões, profundo conhecimento das leis e lógica interpretativa. Para tanto, notários e registradores, como profissionais do direito que são, gozando de independência e autonomia profissional, devem estar atentos às evoluções sociais e seus regramentos positivos, de modo a garantir, com responsabilidade, sensatez e conhecimento de causa, a continuidade dos serviços em face das novas situações que se apresentam, sem esquecer os limites de sua competência, sob pena de invasão em território alheio aos seus deveres de ofício, pois cabe ao juiz-estado, e não aos notários e registradores, a prestação jurisdicional e a interpretação subjetiva da norma.

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

 

1 CHINELATO, Silmara Juny. Comentários ao Código Civil. São Paulo: Editora Saraiva, 2004.

 

1 Decisão prolatada nos autos do Processo nº 000.04.028316-03 Boletim Eletrônico do IRIB – jurisprudência selecionada, disponível em <www.irib.org.br>. Acesso em 18 abr 2006.

 

2 DIP, Ricardo. Registro de Imóveis - vários estudos. Porto Alegre: safE, 2005.

 

3 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Contratos no Novo Código Civil. São Paulo: Editora Método, 2005.

 

4 PEREIRA, Antônio Albergaria. Boletim do Direito Imobiliário. São Paulo: 3º decênio, janeiro/1996, nº 03.

 

5 PEREIRA, _______. Boletim do Direito Imobiliário. São Paulo: 1º decênio março/2006, nº 07.

 

6 RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

 

7 STRECK, Lenio Luiz. Manuais de Direito apresentam profundo déficit da realidade. Disponível   em <www.colegioregistralrs.org.br>. Acesso em 10 abr 2006.

 

8 Súmula 494 do STF.

           

 

           

           

 

             

 


[1]  Tabelião de Notas e de Protestos - Especialista em Direito Registral Imobiliário.

[2]  DIP, Ricardo. Registro de Imóveis - vários estudos. Porto Alegre: safE, 2005, p. 11.

[3] STRECK, Lenio Luiz. Manuais de Direito apresentam profundo déficit da realidade. Disponível   em <www.colegioregistralrs.org.br>. Acesso em 10 abr 2006.

[4] Decisão prolatada nos autos do Processo nº 000.04.028316-03 Boletim Eletrônico do IRIB – jurisprudência selecionada, disponível em <www.irib.org.br>. Acesso em 18 abr 2006.

[5] RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 370.

[6] PEREIRA, Antônio Albergaria. Boletim do Direito Imobiliário. São Paulo: 3º decênio, janeiro/1996, nº 03, p. 30.

[7] PEREIRA, Antônio Albergaria. Boletim do Direito Imobiliário. São Paulo: 1º decênio março/2006, nº 07, p. 33.

[8] LOUREIRO, Luiz Guilherme. Contratos no Novo Código Civil. São Paulo: Editora Método, 2005, p. 368/369.

[9] CHINELATO, Silmara Juny. Comentários ao Código Civil, São Paulo, Editora Saraiva, 2004, vol. 18, p. 302

NOME E SOBRENOME – NOVIDADES

NOME E SOBRENOME – NOVIDADES

NOME E SOBRENOME – NOVIDADES

                                               (*) José Hildor leal

Escrevi há algum tempo, com o título “Em nome do pai e da mãe”, um pequeno texto sobre a recusa, sem fundamentação legal, de um registrador civil das pessoas naturais que deixou de proceder o registro de nascimento de uma criança com o sobrenome do pai antecedendo o sobrenome da mãe, com era intenção dos genitores.

Para o oficial do cartório a ordem dos fatores estava invertida e isto alterava a soma do produto, tal qual na matemática.

O costume no Brasil sempre foi pelo uso do prenome, simples ou composto, seguido do sobrenome da mãe, e por último pelo patronímico do pai, quando não exclusivamente deste, com omissão do nome materno. Nunca o contrário.

Vários tribunais já se manifestaram no sentido de que a composição do nome deve ser feita pelo declarante, no registro de nascimento, consoante a lei, com liberdade na sua formação, vedando unicamente os prenomes que possam expor ao ridículo o portador, e somente na hipótese do declarante não informar o nome completo da criança, cabe ao oficial observar o contido no art. 55, da Lei dos Registros Públicos, qual seja, adiante do prenome escolhido o nome do pai, e na falta, o da mãe.

No Rio Grande do Sul, o Provimento 01/20, da Corregedoria-Geral da Justiça, que instituiu a nova Consolidação Normativa Notarial e Registral, ratificou o entendimento exposto por mim no texto que referi, ao estabelecer, no artigo 155:

“Quando o declarante não indicar o nome completo do registrando, o Registrador lançará adiante do prenome escolhido o nome da mãe e do pai, respectivamente, e na falta deste, somente o da mãe”.

Enfim, podem os pais livremente dispor sobre o nome dos filhos, como melhor lhes aprouver.

Mas, foi mais longe a norma gaúcha, pois a mudança mais significativa se encontra no parágrafo 3º do mesmo dispositivo, que assim dispõe:

“Na composição do sobrenome pelo declarante, possível a utilização dos nomes de família do pai, da mãe, ou de ambos, em qualquer ordem, sendo admissível o uso dos sobrenomes de ascendentes, mediante comprovação de parentesco”.

Em outras palavras, não somente é possível que o nome seja composto pelo sobrenome de qualquer um dos pais, ou de ambos, em qualquer ordem, como também que seja formado com o sobrenome de antecedentes – avós, bisavós – desde que comprovada a descendência.

Certamente haverá alguma dificuldade inicial em assimilar a nova regra, em especial os mais conservadores, pelo costume patriarcal ainda fortemente arraigado em nosso meio, mas o tempo será o fiel da balança, e a modernidade em breve vai se impor ao cotidiano dos cartórios.

Aquilo que sempre for permitido em lei, porém barrado pela errônea leitura do texto legal, é agora esclarecido, e indo inclusive além do nome do pai e da mãe, alcançando até mesmo avós, bisavós, os ascendentes, enfim.

Dando razão ao adágio, antes tarde do que nunca.

(*) Notário, Especialista em Direito Registral Imobiliário

ASSISTÊNCIA DO MENOR POR UM SÓ DOS PAIS

ASSISTÊNCIA DO MENOR POR UM SÓ DOS PAIS

ASSISTÊNCIA E REPRESENTAÇÃO DO MENOR POR UM SÓ DOS PAIS

(*) José Hildor Leal

Tema um tanto quanto tormentoso para notários e registradores, por conta de interpretações desencontradas, diz respeito a falta, ausência e impedimento de um dos genitores do menor, para representá-lo ou assisti-lo em atos cartoriais, assim como para conceder-lhe emancipação ou consentir no seu casamento, dentre outros.

A técnica redacional das disposições legais não é das melhores, quando trata de falta, ausência ou impedimento de um dos pais, por não trazer a sua definição, a exemplo do artigo 1.631, do Código Civil brasileiro, dispondo que “durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade”.

Noutro outro dia travou-se interessante debate em um grupo de discussões de membros da classe, interessados em prestar o melhor atendimento na prática dos serviços, havendo interpretações desencontradas.

Para alguns – tese que acompanho - a falta tem o significado de morte, comprovada pela certidão de óbito; ausência refere-se a pessoa da qual não se tenha notícias ou conhecimento de seu paradeiro pelo prazo definido em lei, comprovado em juízo, e impedimento se relaciona a incapacidade do agente, quer por doença mental ou outro estado mórbido que impossibilite a manifestação de vontade válida.

Para outros, falta é a simples ausência momentânea, bastando ao outro cônjuge declará-la, e impedimento pode ser ocasionado por doença ou retardo visível, ainda que não tenha sua decretação em juízo.

Dessa sorte, há tabeliães e registradores que dão curso a atos com a presença de um só dos pais, na falta, ausência ou impedimento declarada unilateralmente pelo outro, sem maior comprovação, ou no máximo com a participação de duas testemunhas que confirmem o fato - coisa que a lei não prevê. E outros que exigem a prova do alegado.

Embora as disposições do Código Civil brasileiro e do Código de Processo Civil possam parecer dúbias, para o intérprete mais desatento, a Corregedoria-Geral da Justiça do Rio Grande do Sul em boa hora espantou qualquer dúvida, através da Consolidação Normativa Notarial e Registral (Provimento 01/2020),  que passou a vigorar em 1º de março de 2020.

A norma gaúcha, tratando acerca do consentimento dos pais para casamento do filho menor recepcionou a primeira teoria, dando razão ao que pensamos, assim dispondo:

“A falta de um dos pais somente pode ser suprida pela apresentação da certidão de óbito, da certidão do registro da ausência ou por determinação judicial, com o suprimento do consentimento.” (artigo 194, § 4º)

Certamente que a ordem deve ser cumprida para fins de matrimônio do menor assim como para os demais atos, lembrando que pau que bate em Chico bate em Francisco, a exemplo de emancipação e outros, quaisquer que sejam.

De tal modo, e independentemente da posição pessoal de cada um, no Rio Grande do Sul é este o procedimento que deve ser adotado por notários e registradores, sendo dever destes profissionais observar as normas técnicas estabelecidas na Consolidação.

(*) Notário, Especialista em Direito Registral Imobiliário

A MORTE DO DESCONHECIDO E O REGISTRO DE ÓBITO

A MORTE DO DESCONHECIDO E O REGISTRO DE ÓBITO

 A MORTE DO DESCONHECIDO E O REGISTRO DE ÓBITO

                                                                      (*) José Hildor Leal

Ninguém sabia quem era. Apareceu morto, no meio da rua. 

Quando a polícia chegou não tinha mais o que fazer, a não ser saber quem era o defunto.

Em cidade pequena todo mundo conhece todo mundo. A notícia espalhou-se como um rastilho de pólvora. Chegou o pároco, o prefeito se aproximou, chamaram o doutor, vieram compadres e comadres, todo mundo.

Ninguém sabia quem era.

Tiveram que mandar o cadáver para outra cidade, porque no lugar não havia médico legista. Feita a necropsia, voltou o defunto para ser sepultado.

Foi daí que se deu o imbróglio. O cemitério negou-se a fazer o enterro,  sob a alegação que “nenhum sepultamento será feito sem certidão, do oficial do registro civil do lugar do falecimento...” (Lei dos Registros Públicos, artigo 77).

E agora, fazer o quê? O morto não tinha identidade, nenhum documento, nenhum conhecido, nenhum nome para ser declarado no registro.

Ninguém sabia quem era.

A solução foi ir ao cartório para saber o que tinha a dizer sobre o problema o responsável pelo serviço. E lá foi tudo resolvido.

Justifica-se a importância dos cartórios, tanto que em cada sede municipal deve haver no mínimo um registrador civil das pessoas naturais (Lei 8.935/94, artigo 44, § 2º).

O registrador explicou que por lei a autoridade policial é obrigada a fazer a declaração de óbito a respeito de pessoas encontradas mortas (artigo 78, 6º, da LRP).

Orientou que em hipóteses assim o registro deve ser feito com todas as informações possíveis, como estatura ou medida do desconhecido, se for possível, cor, sinais aparentes, idade presumida, vestuário e qualquer outra indicação que possa auxiliar de futuro o seu reconhecimento, a indicação de ter sido achado morto, o lugar onde se achava o corpo e o da necropsia (artigo 81).

Diante disso, o policial designado pela guarnição foi o declarante no registro, gratuito, diga-se de passagem, com a informação do sexo e outros elementos que foram apurados, para eventual identificação futura.

O sepultamento foi feito, enfim, com grande acompanhamento de curiosos e para alívio de todos, que aguardavam um final feliz – se é que assim se pode dizer – para o pobre coitado.

Quando o padre terminou a rápida ladainha, um gaiato ainda rabiscou o último epíteto em uma tosca cruz de madeira cravada sobre a sepultura:

 “Quem saberá quem era?"

E se algum dia alguém souber quem era, o registro de óbito deverá ser retificado, por ordem do juiz, para identificar o defunto.

Até lá, que descanse em paz.

 (*) Tabelião de Notas e Protestos de Vera Cruz (RS)

DA POSIÇÃO DO JUIZ AO IMPEDIMENTO

DA POSIÇÃO DO JUIZ AO IMPEDIMENTO

                                 Da Posição do Juiz ao Impedimento

                                                            (*) José Hildor Leal

"O resto depende da posição do juiz".

Foi com essa frase quer encerramos uma crítica sobre os riscos da profissão e a condenação de um tabelião pela Corregedoria-Geral da Justiça de São Paulo – Processo nº 2016/2168892 (origem 2ª Vara de Registros Públicos), por ter ele feito uma escritura pública declaratória de união estável entre uma anciã de 80 anos e um rapagão de 18.

Questionamos, na ocasião, quanto ao martírio enfrentado por estes profissionais do direito, no dia-a-dia dos cartórios, entre fazer ou negar curso ao que lhes é solicitado.

No caso narrado, o juiz entendeu que o tabelião deveria ter desde logo negado a prática do ato, pela descomunal diferença de idade entre os viventes (ou os conviventes, no caso), observando indícios de fraude, como a pretensão do jovem em receber pensão pela morte da idosa.

Nos posicionamos em defesa do ato cartorário, afirmando ser clara a lei ao dispor que a missão do notário é tomar a termo e dar validade ao que lhe for pedido, formalizando juridicamente a vontade das partes.

Para quem quiser ler o que esfriemos na época, segue o link de acesso: http://www.tabelionatocanela.com.br/noticia/as-coisas-lindas-do-amor-e-da-idade

Mais de dez anos após a assinatura, em grau de recurso – Processo Administrativo nº 0048142-07-2015-26.0100 - prevaleceu o entendimento que defendemos, com a absolvição do tabelião, como segue:

“TJSP: união estável entre pessoas de 28 anos e 92 anos – diferença de idade ou idade longeva de um dos declarantes que não constitui motivo legal para a recusa do ato – recurso provido para julgar improcedente o processo administrativo disciplinar”.

Dentre os brilhantes argumentos de convalidação ao ato, ressalta-se uma passagem nestes termos:

“A fé pública do instrumento notarial (escritura pública declaratória) não diz respeito ao conteúdo da vontade declarada pelas partes, mas sim quanto à existência da declaração em si e, naturalmente, seus efeitos”.

Por isso é que dissemos que nas escrituras declaratórias de união estável deverá ser respeitada a vontade dos conviventes, desde que sejam dois, somente dois os viventes, não mais que dois, de qualquer sexo, diante da posição de impedimento recentemente firmada pelo Conselho Nacional de Justiça quanto às escrituras declaratórias multiafetivas, que estavam começando a se proliferar pelo País.

Para isso, ao menos por enquanto a posição é de impedimento..

(*) Tabelião, Especialista em Direito Registral Imobiliário