ANULABILIDADE E VALIDADE DA ALIENAÇÃO SEM ANUÊNCIA CONJUGAL E VENDA DE ASCENDENTE A DESCENDENTE – ESCRITURA PÚBLICA
E REGISTRO
José Hildor Leal[1]
RESUMO: Trata o presente trabalho de verificar a possibilidade ou não de ser lavrada escritura pública de alienação de bens imóveis, pelo tabelião de notas, e o seu ingresso no registro predial, nas hipóteses de bens incomunicáveis, alienados pelo seu proprietário exclusivo, sem vênia conjugal, e ainda sobre a venda de ascendente para descendente, sem consentimento dos demais descendentes, ou do cônjuge do alienante, em razão de haver conflito de interpretação, assim no âmbito notarial quanto no de registros. Busca-se, ao longo do estudo, tornar compreensíveis os institutos, adentrando na anulabilidade dos atos decorrentes dessa prática e sua admissibilidade no plano da validade e da eficácia.
PALAVRAS-CHAVE: Alienação. Cônjuge. Ascendente. Descendente. Consentimento. Validade. Anulabilidade.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Alienação e consentimento conjugal; 3. Venda de ascendente a descendente; 4. Prazo para anulação; 5. Validade; 6. Conclusão.
1 INTRODUÇÃO
A regra, no ordenamento jurídico pátrio, é que nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis.
Há entendimento de alguns profissionais do direito, afetos aos serviços cartorários, quanto à inviabilidade da celebração do contrato sem o assentimento conjugal, exceto se o regime patrimonial for o da absoluta separação de bens.
Outros, por seu turno, defendem a prática do ato, entendendo-o lícito e possível, desde que devidamente orientadas as partes quanto aos riscos decorrentes de possível anulabilidade.
Do mesmo modo, diverge-se sobre acharem-se impedidos ou não, o tabelião de notas de lavrar, e o registro predial de acolher, escritura pública de venda de ascendente a descendente, sem o consentimento dos demais descendentes e do cônjuge, passível também de ser anulada.
O estudo que ora se desenvolve tem por objetivo verificar se é ou não legal a lavratura, pelos tabeliães de notas, de escritura pública de alienação de imóveis nas condições verificadas, e o seu ingresso no fólio real, desde que condicionadas a certas particularidades.
Para tanto, haverá de se observar primeiro, frente ao ordenamento jurídico, em especial no plano da validade e da existência, se o negócio desta natureza é lícito ou ilícito, nulo ou anulável, possível ou não, fazendo-se o cotejo dos seus diferentes efeitos, e por quais razões os serviços notariais e de registros podem lhe dar guarida, ou simplesmente recusar a sua feitura e registro.
Parte-se da premissa que os profissionais do direito, afetos aos serviços cartorários, têm conhecimento, senão pleno, ao menos necessário, do sistema jurídico em toda a sua complexidade, sendo inadmissível, nos dias atuais, que notários e registradores não sejam aptos a fazer as suas próprias conclusões a partir do texto legal, e inaceitável que sigam, sem discussão de mérito, ensinamentos doutrinários evasivos, sem maior aprofundamento frente às inovações trazidas pela legislação vigente, e que inclusive em certos casos desvirtuam o real sentido de suas disposições, ou ainda que fogem, por comodismo ou insegurança no trato da matéria, a um exame mais fecundo dos temas ligados aos serviços notariais e de registros, o mesmo se dando em relação à jurisprudência pretérita, não aplicável nos dias atuais.
Impõe-se, para atender o modelo posto, uma visão moderna, eclética, corajosa, lúcida, enfim uma atividade criadora, nem por isso esquecendo a prudência, a que se refere Ricardo Dip[2], como compete a um profissional da área, e ninguém melhor do que ele, notário ou registrador, pelo fato de vivenciar, no seu dia-a-dia, em razão de seu ofício, as inúmeras situações que clamam por solução, para dar ou negar-lhes curso, conforme o caso, adequando o fato à norma, sem esquecer que ao notário compete, por disposição legal “formalizar juridicamente a vontade das partes” (art. 6º, I – Lei 8.935/94), sendo, ainda, conselheiro imparcial.
Certamente é mais cômodo deixar de praticar o ato complexo sob a alegação de que o negócio não pode ser feito, sem que, no entanto, seja procedida uma abrangente e necessária avaliação ao caso concreto e à possível solução a lhe ser dada. Verifica-se às vezes uma interpretação restrita, limitada, das disposições legais, como remanescente de um modelo arcaico, através de uma leitura eivada de conservadorismo e de temores, esquecendo-se que o direito é dinâmico e deixando-se assim de dar prática a atos perfeitamente possíveis.
Lenio Luiz Streck[3] bem sintetiza que
já há algum tempo venho denunciando a crise da dogmática jurídica. Tenho falado de uma crise de paradigmas de dupla face: uma crise de modelo e uma crise de caráter hermenêutico (compreensivo). De um lado, os operadores do direito continuam reféns de uma crise emanada da tradição liberal-individualista-normativista; de outro, permanecem mergulhados na crise dos paradigmas aristotélico-tomista e da filosofia da consciência. O resultado dessas crises é um Direito alienado da sociedade, questão que assume foros de dramaticidade se compararmos ao texto da Constituição com as promessas incumpridas da modernidade.
O Direito evoluiu, não simplesmente porque, por vontade do legislador, novas regras surgiram, mas pela razão que surgiram novas regras por imposição da própria sociedade moderna. O velho brocardo latino “ubi societas, ibi jus”, a significar que onde está a sociedade, ali também está o direito, permanece válido e atual, porém inserido em outro momento histórico, em face da acelerada evolução dos povos. Os tempos mudaram, os costumes se alteraram, e aquilo que ontem era tido como impossível de se praticar é hoje fato curial, ensejando com isso que hodiernamente se tenha um novo enfoque, um outro modo de ver, interpretar e celebrar o direito.
2 ALIENAÇÃO E CONSENTIMENTO CONJUGAL
Viu-se que a regra geral é pela necessidade da vênia conjugal na alienação de bens imóveis, parecendo haver, num primeiro momento, uma única exceção a permitir a sua dispensa. No entanto, a leitura mais abrangente sobre o tema vai remeter a outras várias.
Para melhor acompanhamento das digressões feitas, é fundamental a leitura das disposições pertinentes, postas pelo Código Civil brasileiro:
Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta:
I – alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis;
II – pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens ou direitos;
III – prestar fiança ou aval;
IV – fazer doação, não sendo remuneratória, de bens comuns, ou dos que possam integrar futura meação.
Parágrafo único. São válidas as doações nupciais feitas aos filhos quando casarem ou estabelecerem economia separada.
Antes de ingressar no tema propriamente dito, impõe-se esclarecer que o dispositivo trata dos bens particulares, incomunicáveis, ou exclusivos de cada cônjuge, posto que nas hipóteses de venda, doação ou de qualquer outra forma de alienação de bens comuns, não será caso de autorização, mas de participação conjunta e igualitária no ato, isto é, não estará apenas um dos cônjuges alienando e outro meramente consentindo - ambos estarão outorgando, alienando. E se ambos alienam, como proprietários, o bem comum, não há o que se discutir: é evidente não ser possível que um só o faça, pena de nulidade, não esquecendo que o ato nulo, ao contrário do ato anulável, não tem convalidação. Diversamente, se forem bens particulares, exclusivos de um só dos cônjuges, logo incomunicáveis, então é efetivamente caso de mera autorização, onde apenas um deles aliena e o outro simplesmente expressa a sua concordância, e não havendo assentimento o ato não é nulo, mas anulável, podendo ou não ser convalidado pelo decurso de tempo ou ulterior aprovação conjugal, ou ainda por decisão jurisdicional, reiterando-se que o ato nulo nasce morto, não vale, enquanto que o anulável nasce válido, podendo ou não assim se manter.
A única conclusão lógica a que se pode chegar, portanto, é que o dispositivo em comento diz respeito unicamente aos bens incomunicáveis, não se aplicando aos bens comuns, e jamais para casais que tenham adotado o regime da comunhão universal de bens, salvo, nesse caso, os bens excluídos da comunhão (art. 1.668 CC). Logo, o artigo refere-se exclusivamente aos bens incomunicáveis, singulares, exclusivos.
Feita esta necessária distinção, passa-se a verificar as exceções objeto de estudo, a permitir a celebração do contrato sem a vênia conjugal.
Embora o código pareça imperativo no sentido de proibição, ao dispor que “nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro...”, induzindo a crer que o ato não pode ser feito de forma alguma, se vai verificar que não é exatamente assim, havendo além da exceção pertinente à absoluta separação de bens, outras mais.
A primeira delas vem claramente contida no caput do artigo em comento, ao permitir que se pratique os atos a que menciona nos respectivos incisos e no seu parágrafo único, desde que o regime patrimonial seja o da separação absoluta.
Para isso não basta, portanto, que se tenha simplesmente pactuado a separação de bens, e nem que esta tenha se dado por imposição de lei (regime da separação legal ou obrigatória). Exige a lei que na escritura pública de pacto antenupcial exista cláusula prescrevendo a separação absoluta, não mera separação, de tal modo não poderá haver comunhão de aqüestos para que se possibilite a dispensa de outorga, entendo-se que bens aqüestos são aqueles adquiridos a título oneroso, na vigência da sociedade conjugal, quando se presume a comunicabilidade, a qual, para ser ilidida, necessita que se tenha pactuado de forma diversa na convenção; ou, ainda, desde que não se trate de bens havidos em sub-rogação de patrimônio exclusivo, assim declarado no título aquisitivo.
Então, para que ocorra a exceção prevista no caput do art. 1.647, a escritura de pacto antenupcial deverá conter expressa disposição no sentido da mais absoluta separação de bens, presentes e futuros, inclusive os que forem havidos a título oneroso, na vigência do consórcio, ainda que tanto se pudesse entender implícito no art. 1.687. Nas hipóteses de aquisição conjunta, em nome de ambos, os bens assim adquiridos serão tidos e possuídos em condomínio, não em comunhão de aqüestos.
Portanto, em todos os demais regimes patrimoniais que não o da separação absoluta de bens, se faz necessário, via de regra, o consentimento conjugal na alienação de bens particulares. Porém, o descumprimento do preceito não torna o ato nulo, mas simplesmente anulável, motivo pelo qual não deve o tabelião de notas fazer vezes de juiz da causa e recusar a sua lavratura, pois a lei não proíbe que seja feita a contratação, e nem o registrador obstar o seu registro, por não haver amparo legal para a negativa. Pelo contrário, o ato deve ser feito pelo tabelião e registrado no serviço imobiliário, tomando-se para tanto as cautelas necessárias.
O que cabe ao notário, com toda a certeza, é prevenir litígios, orientando quanto às conseqüências do ato que as partes pretendam produzir, esclarecendo-lhes sobre a anulabilidade decorrente da falta de assentimento, aconselhando-as, com imparcialidade, a não praticá-lo. Se, inobstante, mantiverem assim mesmo a firme intenção de levar a cabo o empreendimento, caber-lhe-á formalizar juridicamente tal disposição, devendo inserir texto na escritura de que fez os necessários esclarecimentos, colhendo ainda, no próprio título, declaração das partes de que assumem o risco contratual, estando cientes das disposições contidas nos dispositivos tais. Ao registrador, por sua vez, cabe fazer o registro, e por medida de prudência, com a menção de tratar-se de negócio resolúvel, aos efeitos de publicidade e conhecimento de terceiros.
A segunda exceção se verifica no inciso IV do artigo estudado, ao proibir apenas a doação não remuneratória, e permitindo conseqüentemente a doação remuneratória, indo até mais longe, nessa hipótese, ao tratar inclusive de bens comuns, ou dos que possam integrar futura meação.
A terceira vem inserta no parágrafo único, ao estabelecer que são válidas as doações nupciais feitas aos filhos quando casarem ou estabelecerem economia separada, independente de assentimento conjugal.
A quarta exceção à regra reside na possibilidade de suprimento da outorga, pelo juiz, quando um dos cônjuges a denegue sem motivo justo, ou lhe seja impossível concedê-la (art. 1.648).
A quinta, quando estabelece o código, no art. 1.649, que o ato é anulável, admitindo que seja feito, mas cominando uma pena se não houver o assentimento, qual seja a sua anulabilidade, marcando inclusive prazo decadencial para ser requerida a invalidade, findo o qual restará convalidado. Ressalte-se, ainda, que o pedido de anulação somente poderá ser proposto pelo cônjuge que não se manifestou no ato, ou por seus herdeiros, no prazo de dois anos depois de terminada a sociedade conjugal, e permitindo ainda, no parágrafo único, posterior aprovação ao ato, ainda que por documento particular autenticado, vale dizer, com firma reconhecida.
A sexta exceção quanto ao consentimento conjugal se verifica quando da alienação, por venda, de ascendente a descendente, nesse caso dispensando a anuência desde que o regime de bens seja da separação obrigatória (art. 496, par. único), havendo portanto uma inversão à regra da separação convencional absoluta.
Outra: no pacto antenupcial que adotar o regime da participação final nos aqüestos, poder-se-á convencionar a livre disposição dos bens imóveis, desde que particulares (art. 1.656). Assim, uma vez convencionada, não haverá necessidade de manifestação conjugal para alienação de bens imóveis.
Embasada juridicamente, é altamente salutar, moderna e reveladora de louvável interesse ao estudo e dedicação às causas que lhe são submetidas, sendo merecedora de grifo, como se faz, a decisão tomada pelo Dr. Venício Antônio de Paula Salles, Juiz de Direito da 1ª Vara dos Registros Públicos de São Paulo, prolatada nos autos do Processo nº 000.04.028316-0[4]:
Ementa não oficial. O Novo Código Civil não perpetuou a necessidade do consentimento do cônjuge na alienação de bens incomunicáveis. As alienações nos termos da nova lei poderão prescindir de tal formalidade.
A ementa, por si só, dispensa maiores comentários, resumindo em poucas linhas uma verdade incontestável.
Como o código é recente, não se acha ainda maior volume de decisões judiciais ou doutrina nesse sentido. A lógica interpretativa, porém, leva a crer que brevemente não restará dúvida quanto a ser possível a contratação sem consentimento do cônjuge, tratando-se de bem exclusivo, embora passível de anulabilidade, a critério do juiz de eventual causa, na aferição dos motivos, sendo certo que não basta ao cônjuge preterido no assentimento requerer a anulação do ato para ter sucesso na empreitada, tendo isso sim o dever de demonstrar prejuízo ou de que o bem não era de propriedade exclusiva do alienante. Logo, o ato é anulável se houver vício; caso contrário, ao juiz caberá reconhece-lo válido.
Evidencia-se, e assim tem sido reiterado pelos tribunais superiores, que “a lei não pode ser interpretada em tiras”, pois se trata ela de um conjunto harmônico, entrelaçado em seus diversos dispositivos, como elos de uma única corrente, chamada sistema, um a formar e informar ao outro, ao mesmo tempo com independência e subordinação recíprocas.
3 VENDA DE ASCENDENTE A DESCENDENTE
Da mesma forma como deve o cônjuge preterido de anuir demonstrar prejuízo ou vício para pleitear anulação da alienação feita por seu consorte, pena de não obter êxito em seu intento, também o descendente que não consentiu na venda do ascendente a outro descendente impõe-se igualmente fazê-lo, sendo que a jurisprudência, assim como os ensinamentos doutrinários, aplicáveis a esta espécie podem ser utilizados, por analogia, também ao primeiro caso, por tratarem, ambos, de consentimento vinculado à anulação.
Arnaldo Rizzardo[5] ministra que:
é indispensável a ocorrência de prejuízo aos demais herdeiros, como o que se chega à existência da fraude. A mera venda não importa em anulabilidade, se real o negócio, e condizente o valor pago ao preço verdadeiro.
Continuando, o doutrinador cita Jesualdo Eduardo de Almeida Júnior, ao entender que o simples fato de não ter existido a concordância dos demais herdeiros, não retiraria, de per si, a validade do negócio, sendo imprescindível, pois, que se prove o consilium fraudis entre o alienante ascendente e o comprador descendente.
E arremata: “A fraude deve ser provada. Jamais se presume”.
Discutia-se então, na vigência do código revogado, se a venda de ascendente para descendente, sem o consentimento dos demais descendentes, era nula ou anulável. De fato, o Código Civil brasileiro de 1916 preceituava, em seu art. 1.132, que “Os ascendentes não podem vender as descendentes, sem que os outros descendentes expressamente consintam”.
O novo código, além de exigir também agora a anuência do cônjuge do vendedor, para alienação ao descendente, exceto no regime da separação legal (obrigatória) de bens, acabou com a polêmica, declarando simplesmente anulável o ato (art. 496).
Antônio Albergaria Pereira[6], ícone do notariado brasileiro, ainda na vigência do antigo código, quando então se polemizava entre a nulidade ou a anulabilidade da venda de ascendente a descendente sem o consentimento dos demais, já defendia, com arrojo e sabedoria, ser possível a lavratura e o registro do ato assim feito, esclarecendo que:
alguns notários recusam acolher em suas notas, escritura de venda e compra, pela qual os pais vendem a um filho determinado imóvel sem anuência dos demais descendentes. Tal recusa repousa no art. 1.132 do Código Civil. Para nós, essa recusa improcede, pois, com ela, o notário adentra numa área que só ao juiz cabe apreciar, ou seja, constatar efetivamente se a venda do imóvel não está mascarando uma doação, prejudicando a igualdade das legítimas dos demais descendentes. A área do notário e do oficial registrador é eminentemente e exclusivamente objetiva. Voltamos novamente ao assunto, não para ensinar quem quer que seja, muito menos para demover aqueles que recusam a lavratura da escritura, mas tão somente para justificar a validade do ato daquele notário que lavrar escritura dessa natureza. Não está ele cometendo uma irregularidade funcional, ante o que o Superior Tribunal de Justiça decidiu ao apreciar o Resp 977-0 pela sua 4ª Turma, cuja ementa é do teor seguinte: “Sem embargo das respeitabilíssimas opiniões em contrário, na exegese do art. 1.132 do CC tem-se por anulável o ato da venda de bem a descendente sem o consentimento dos demais, uma vez: a) que a declaração de invalidade depende da iniciativa dos interessados; b) porque viável a sua confirmação; c) porque não se invalidará o ato se provado que justo e real o preço pago pelo descendente.” Cf. RT.717/259.
Passada uma década do ensinamento do tabelião paulista, e já vigente o novo Código Civil, vem novamente o Dr. Albergaria[7] trazer os seus ensinamentos, ao discorrer sobre a compra e venda de ascendente para descendente, assim expondo:
o notário não está impedido, e nem comete irregularidade funcional alguma, se lavrar uma escritura de venda e compra de um imóvel na qual figuram como outorgantes os pais do filho, sem a concordância dos outros, se existirem.
O que antes se discutia, hoje é pacífico, em razão da nova redação do dispositivo legal, no código vigente, através do art. 496: “É anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido”. O parágrafo único dispensa o consentimento conjugal se o regime de bens for o da separação obrigatória.
Mas, mesmo assim, persiste para alguns a idéia de não ser possível patricar o ato sem a anuência dos demais descendentes.
Luiz Guilherme Loureiro[8] colaciona que
há divergência na doutrina sobre a possibilidade de lavratura e registro de escritura de compra e venda de imóvel sem a anuência de todos os descendentes e do cônjuge. Para alguns, o notário não deve lavrar tal escritura, pois deve velar pela validade do negócio jurídico. Para outros, são possíveis a lavratura e o registro da escritura, porque se trata de anulabilidade e não de nulidade. Não está em jogo o interesse da sociedade, mas sim o do particular. Cabe a este, querendo, anular o contrato. Não o fazendo no prazo decadencial previsto em lei, a compra e venda é considerada válida, não mais podendo ser impugnada pelo interessado. Esta última posição é a prevalente: a jurisprudência do Conselho Superior da Magistratura aponta para o descabimento da recusa do registro de escritura de compra e venda de imóvel de ascendente a descendente em que falte o consentimento de algum dos demais descendentes.
Importante refletir com relação a esta última parte: “A jurisprudência do Conselho Superior da Magistratura aponta para o descabimento da recusa do registro...”.
Com todo respeito às opiniões contrárias, não há como negar o evidente.
Pode-se argumentar, ainda, que seria possível então, da mesma forma, entender-se viável a lavratura de escritura, pela qual um menor, relativamente incapaz, alienasse bens, posto que o art. 171 do Código Civil expressa que é apenas anulável o negócio jurídico por incapacidade relativa do agente.
A situação, no entanto, não é a mesma, pois envolve questão de capacidade jurídica.
A leitura do artigo 171 tem que ser feita em conjunto com o art. 104, ao dispor, este último, que a validade do negócio jurídico requer agente capaz. E ao referir-se a agente capaz, o código não faz distinção entre ser absoluta ou relativa a incapacidade, sendo de considerar-se, assim, que abrange ambas as espécies, e logo padecendo de invalidade o ato celebrado que por menor, ainda que relativamente capaz.
Desse modo, em se tratando de negócio envolvendo menores, entende-se que não deve o tabelião de notas praticar o ato, e tampouco o registro de imóveis acolhe-lo, salvo se houver alvará de autorização do juiz a permitir que o menor faça a alienação pretendida.
4 PRAZO PARA ANULAÇÃO
Praticado o ato, seja de alienação de bens particulares sem vênia conjugal, seja de venda de ascendente a descendente sem consentimento dos demais herdeiros, o prazo para requerer a sua anulação é decadencial, de dois anos.
Para o caso de propositura de ação visando a anulação da alienação feita pelo cônjuge sem anuência do outro, o prazo deverá ser contado do término da sociedade conjugal, conforme preceitua o art. 1.649: “A falta de autorização, não suprida pelo juiz, quando necessária (art. 1.647), tornará anulável o ato praticado, podendo o outro cônjuge pleitear-lhe a anulação, até dois anos depois de terminada a sociedade conjugal”.
Deve-se entender por terminada a sociedade conjugal, salvo melhor juízo, a partir da sentença que homologar a separação, ou do seu trânsito em julgado. Sendo recente o código e não havendo ainda decisões nesse sentido, haverá que se aguardar a posição jurisprudencial, que poderá trazer entendimento diverso.
No entanto, há vasta jurisprudência declinando no sentido que a separação de fato é suficiente para a incomunicabilidade do patrimônio havido por um só dos cônjuges ainda que no estado de casado, qualquer que seja o regime de bens.
Silmara Juny Chinelato[9] cita o acórdão da 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, relator o Desembargador Silvério Ribeiro, estampada na RJTJSP, 135:10, do qual transcreve:
...não coaduna com os princípios de Justiça efetuar a partilha de patrimônio auferido por apenas um dos cônjuges, sem ajuda do consorte, em razão de separação de fato prolongada, situação que geraria enriquecimento ilícito àquele que de forma alguma não teria contribuído para a geração de riqueza. O fundamental no regime da comunhão de bens é o animus societatis e a mútua contribuição para a formação de um patrimônio comum. Portanto, sem a idéia de sociedade e sem a união de esforços do casal para a formação desse patrimônio, afigurar-se-ia injusto, ilícito e imoral proceder ao partilhamento de bens conseguidos por um só dos cônjuges, estando o outro afastado da luta para a aquisição dos mesmos.
No mesmo sentido, o acórdão do egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, inserto na RJTJSP, São Paulo, 114:102, relator o Desembargador Alves Braga, e acórdão do mesmo Tribunal, RJTJSP, 141:82, dentre outros.
Para a hipótese de anulação da venda de ascendente a descendente, tinha-se, na vigência da lei anterior, que o prazo para a anulação era de 20 anos, conforme a Súmula 494 do STF [10].
Revogada a súmula pelo novo código, o prazo decadencial é agora de dois anos, com fundamento no art. 179, findo o qual, não requerida, ou requerida e não obtida, convalescerá o negócio feito.
Efetivamente, dispõe o citado artigo 179 que “Quando a lei dispuser que determinado ato é anulável, sem estabelecer prazo para pleitear-se a anulação, será este de dois anos, a contar da data da conclusão do ato”.
Tem-se que a conclusão do ato ocorre com o registro na tábula imobiliária. Não é outro o entendimento de Arnaldo Rizzardo[11]:
O Código de 2002 não é propriamente omisso, pois, no seu art. 179, previu a decadência, que se dá em dois anos, para todos os atos ou negócios anuláveis, sem estabelecer prazo para pleitear a anulação... Considera-se realizado o ato com o registro imobiliário da escritura ou do contrato. Se não efetuada esta providência, inicia o lapso temporal na data do conhecimento da venda pelos demais herdeiros ou pelo cônjuge sobrevivente.
Nos dois casos estudados a lei dispõe que o ato é anulável. A diferença é que um deles deve ter o prazo contado a partir do registro do ato, ou ainda da data do conhecimento do fato, enquanto que o outro a partir da sentença que tenha posto fim à sociedade conjugal, ou do seu trânsito em julgado, conforme venha a se firmar futura jurisprudência, que poderá ter ainda entendimento diverso, a exemplo de contar-se o prazo desde a separação de fato.
5 VALIDADE
O Código Civil brasileiro estabelece, no art. 104, que a validade do negócio jurídico requer agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável, e forma prescrita ou não defesa em lei.
Por aí se verifica que os negócios de que cuida este estudo, quais sejam a alienação de bens incomunicáveis feita por um dos cônjuges sem assentimento do outro, assim como a venda de ascendente para descendente sem o consentimento dos demais descendentes, ou do cônjuge, tratam-se de atos válidos, muito embora o risco da anulação, que poderá ou não ocorrer.
Sendo assim, não se vislumbra nenhum tipo de impedimento ético ou profissional que iniba o tabelião de lavrar escrituras públicas de tal natureza, e tampouco o registro de imóveis de lhes dar acolhida, observadas sempre as cautelas referidas inicialmente, diferentemente da alienação feita pelo menor, que não será válida por incapacidade do agente.
O melhor entendimento leva a crer que não devem, notários e registradores, uma vez prestados os esclarecimentos necessários quanto aos riscos advindos da contratação assim feita, especialmente ao maior interessado no negócio e em sua segurança, que é o adquirente, recusar a feitura e o registro de ato válido, feito por agente capaz, cujo objeto seja lícito, possível, determinado ou determinável, devendo para tanto dar ao ato a forma prescrita em lei, que não o tem como defeso.
6 CONCLUSÃO
Feita a análise das temáticas a que se propôs o presente estudo, resulta claro que é válida, muito embora anulável, a alienação de bens exclusivos (incomunicáveis) feita por pessoa casada sem o assentimento conjugal, independente do regime de bens, e assim também a venda de ascendente a descendente sem o consentimento dos demais descendentes, sendo que eventual invalidade somente será declarada havendo vício ou justa causa, a requerimento exclusivo do interessado que deixou de anuir, não podendo ser argüido pelo Ministério Público e tampouco reconhecido de ofício pelo juiz, por não haver prejuízo à sociedade.
Destarte, tendo-se que o ato é válido, não comporta recusa do tabelião de notas em lavrá-lo, e tampouco do oficial de registro de imóveis em acolhê-lo, uma vez que eventual anulabilidade deverá ser objeto de apreciação pelo poder judiciário, devendo o primeiro formalizar juridicamente a vontade das partes e o segundo efetuar o registro, não lhes competindo impedir a realização de atos válidos, ou deixar de praticá-los, desde que não contrários à ordem pública, e uma vez adotadas as medidas assecuratórias das providências tomadas, como a inserção, nos documentos lavrados, acerca do conhecimento dado aos seus participantes e de suas implicações legais.
A dinâmica do direito exige constante aprendizado, mudanças de conceitos, agilidade de decisões, profundo conhecimento das leis e lógica interpretativa. Para tanto, notários e registradores, como profissionais do direito que são, gozando de independência e autonomia profissional, devem estar atentos às evoluções sociais e seus regramentos positivos, de modo a garantir, com responsabilidade, sensatez e conhecimento de causa, a continuidade dos serviços em face das novas situações que se apresentam, sem esquecer os limites de sua competência, sob pena de invasão em território alheio aos seus deveres de ofício, pois cabe ao juiz-estado, e não aos notários e registradores, a prestação jurisdicional e a interpretação subjetiva da norma.
REFERÊNCIAS
1 CHINELATO, Silmara Juny. Comentários ao Código Civil. São Paulo: Editora Saraiva, 2004.
1 Decisão prolatada nos autos do Processo nº 000.04.028316-03 Boletim Eletrônico do IRIB – jurisprudência selecionada, disponível em <www.irib.org.br>. Acesso em 18 abr 2006.
2 DIP, Ricardo. Registro de Imóveis - vários estudos. Porto Alegre: safE, 2005.
3 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Contratos no Novo Código Civil. São Paulo: Editora Método, 2005.
4 PEREIRA, Antônio Albergaria. Boletim do Direito Imobiliário. São Paulo: 3º decênio, janeiro/1996, nº 03.
5 PEREIRA, _______. Boletim do Direito Imobiliário. São Paulo: 1º decênio março/2006, nº 07.
6 RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
7 STRECK, Lenio Luiz. Manuais de Direito apresentam profundo déficit da realidade. Disponível em <www.colegioregistralrs.org.br>. Acesso em 10 abr 2006.
8 Súmula 494 do STF.
[1] Tabelião de Notas e de Protestos - Especialista em Direito Registral Imobiliário.
[2] DIP, Ricardo. Registro de Imóveis - vários estudos. Porto Alegre: safE, 2005, p. 11.
[3] STRECK, Lenio Luiz. Manuais de Direito apresentam profundo déficit da realidade. Disponível em <www.colegioregistralrs.org.br>. Acesso em 10 abr 2006.
[4] Decisão prolatada nos autos do Processo nº 000.04.028316-03 Boletim Eletrônico do IRIB – jurisprudência selecionada, disponível em <www.irib.org.br>. Acesso em 18 abr 2006.
[5] RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 370.
[6] PEREIRA, Antônio Albergaria. Boletim do Direito Imobiliário. São Paulo: 3º decênio, janeiro/1996, nº 03, p. 30.
[7] PEREIRA, Antônio Albergaria. Boletim do Direito Imobiliário. São Paulo: 1º decênio março/2006, nº 07, p. 33.
[8] LOUREIRO, Luiz Guilherme. Contratos no Novo Código Civil. São Paulo: Editora Método, 2005, p. 368/369.
[9] CHINELATO, Silmara Juny. Comentários ao Código Civil, São Paulo, Editora Saraiva, 2004, vol. 18, p. 302