A VONTADE DO FALECIDO E O TESTAMENTO

 A VONTADE DO FALECIDO E O TESTAMENTO

               A VONTADE DO FALECIDO E O TESTAMENTO
                              José Hildor Leal (*)
O falecido deixou um testamento determinando que a parte disponível de seu patrimônio, consistente de três imóveis, coubesse a três sobrinhos. Quando o ato foi assinado eram vivos seus pais, únicos herdeiros necessários, motivo pelo qual não lhe foi facultado dispor da totalidade dos bens na ocasião, pois a lei determina que a legítima dos herdeiros necessários não poderá ser incluída no testamento.
Passado um tempo vieram a óbito os pais do testador, que os sucedeu na morte, ficando como herdeiros colaterais dois irmãos.
Diante disso questiona-se: na ausência de herdeiros necessários a herança caberá metade aos herdeiros legítimos, e metade aos herdeiros testamentários, ou deverá pertencer em sua totalidade a estes últimos?
Duas correntes se formaram. Uma, onde me incluo, entendendo que se o testamento dispôs sobre a metade do patrimônio, e não à totalidade dele, deverá caber metade aos irmãos, por sucessão legítima, e a outra metade aos sobrinhos, como herdeiros testamentários.
A tese contrária defendeu que toda a herança pertencerá aos sobrinhos, pela ausência de herdeiros necessários no momento da morte do testador, pois se deixou a disponível e não tem herdeiros necessários, a parte disponível é a totalidade.
E que o artigo 1.850, do Código, esclarece que “para excluir da sucessão herdeiros colaterais, basta que o testador disponha de seu patrimônio sem os contemplar”.
Foi citada inclusive decisão superior em caso similar, no sentido de que o artigo 1.850 havia afastado os colaterais da sucessão, mesmo que a disposição tenha sido quanto a parte disponível, porém não havendo herdeiros necessários no momento da morte do testador, justamente em face do disposto no citado artigo 1.850 (Agravo em Recurso Especial nº 1.309.415 – SP (2018/0145941-0).
A decisão contraria o melhor direito, o que será demonstrado em outra postagem, pois o tema é relevante e merece exame mais aprofundado.
Abre-se aqui parênteses para ressaltar a importância do tabelião na elaboração do testamento. Uma frase lapidar do colega Felipe Leonardo Rodrigues resume a ideia: “A redação é a alma do ato notarial”.
De fato, bastaria o tabelião ter questionado o testador para saber se pretendia afastar os colaterais da sucessão, ou não, e ter deixado clara a sua vontade, esclarecendo que na falta de herdeiros necessários, no momento de sua morte, a herança coubesse toda ela aos herdeiros testamentários. 
Como não houve manifestação inequívoca, clara e precisa, não cabe ao intérprete presumir a real intenção do testador, pena de modificar sua vontade. 
Há que se ter em mente que a vontade do testador é aquela manifestada na outorga do ato, não no momento da morte, quando a situação pode ser diversa.
No primeiro parágrafo deste texto foi informado que o falecido deixou um testamento determinando que a parte disponível de seu patrimônio coubesse a três sobrinhos. Assim, não há que se falar em todo, quando se fala em parte. É importante que se compreenda essa premissa: “quem dispõe de parte não dispõe de tudo, assim como quem dispõe de tudo não dispõe de parte”.
E se o testador dispôs da metade de seu patrimônio, como será possível que a metade seja tudo? 
E a resposta, como sempre, estará na lei e na sua correta interpretação.
Zeno Veloso, comentando o artigo 1.850, sintetiza com sabedoria: “Para excluir da sucessão os herdeiros colaterais, basta que o testador disponha, em favor de terceiros, da totalidade do seu patrimônio” (Código Civil Comentado, coordenação de Ricardo Fiuza).
Destaque-se a última frase: “... da totalidade do seu patrimônio”.
É questão de lógica: se A, que tem herdeiros necessários, no momento da disposição, deixar 1/3 da parte disponível de seu patrimônio a favor B, seu serviçal, mas que venha a falecer sem que existam mais tais herdeiros, por evidente que a herança não caberia toda ela a B, mas sim aquilo que lhe foi destinado, cabendo o restante aos colaterais.
Igualmente, se o mesmo A fizesse o testamento após a morte dos herdeiros necessários, e ainda assim dispusesse de 1/3 a B, não estaria com isso afastando os colaterais da sucessão, o que somente ocorreria de dispusesse de tudo a B.
É isso que estabelece o artigo 1.850.
Ora, pergunta-se: no exemplo aqui discutido acaso o testador dispôs da totalidade do seu patrimônio? Não, não, não. A disposição foi da parte disponível, correspondente à metade do patrimônio. Assim, por força de lei, a outra metade cabe a quem de direito.

“A César o que é de César” é uma frase atribuída a Jesus nos evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos, Lucas), onde se lê: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”.
Em arremate, aos irmãos o que é dos irmãos.

(*) Tabelião, Especialista em Direito Registral Imobiliário