EM NOME DO PAI E DA MÃE

EM NOME DO PAI E DA MÃE

                                         Em Nome do Pai e da Mãe

                                                      (*) José Hildor Leal

Pois o neto do filho da comadre da vizinha da mãe do meu amigo Anastácio voltou indignado do cartório, porque se recusaram a registrar o seu primogênito com o nome de Jacó Pereira da Silva, sob a alegação de que o nome do menino precisava ser Jacó da Silva Pereira, conforme a lei. Foi o que ele disse que disseram a ele.

José Pedro Pereira, neto do filho da comadre da vizinha da mãe do meu amigo Anastácio argumentou, diante da lei, que Maria da Silva, a mãe do filho dele, tinha escolhido o nome, e se ele voltasse pra casa com a certidão do rebento uma vírgula fora do lugar, o bicho pegava. Afinal, quem é que mandava em casa?

Não teve jeito, nem com reza braba o homem do cartório permitia o registro com o nome do pai na frente, exigindo na frente o nome da mãe, e por último o nome do pai, ou seja, Jacó da Silva Pereira, nunca Jacó Pereira da Silva.

Por isso o Anastácio sugeriu ao neto do filho da comadre da vizinha da mãe dele que viesse falar comigo, para ver o que eu tinha a dizer sobre a intenção de registrar o recém nascido como a mãe impunha que fosse registrado, Jacó Pereira da Silva.

Quando o neto do filho (etc..) relatou-me o fato desandei a dar risada, não dele, nem da agonia dele, mas só de imaginar a cara do agente responsável pelo registro negando-se a fazer o assento, sob o argumento que a lei não permite fazer, tipo a carranca de cachorro rosnento que fiz certa vez, quando recusei lavrar uma escritura declaratória de união estável a três, dois homens e uma mulher, ou o contrário, não lembro. Tudo porque a lei não permitia. Claro, hoje já pode.

Os homens da lei são assim, implacáveis no cumprimento da norma. Mas que eu acho muito engraçada a cara de quem nega o ato, com toda a seriedade, isso eu acho, e especialmente quando falta argumento legal para a recusa, porque afinal de contas onde está escrito, na lei, que a criança tem que ser registrada em nome da mãe e do pai, nessa ordem, e não em nome do pai e da mãe?

Ao contrário, a Constituição Federal garante iguais direitos a homens e mulheres, que podem livremente compor o nome do filho, e somente na hipótese de não haver indicação do nome completo é que o oficial fará uso da lei – inconstitucional, inclusive – e lançará adiante do prenome escolhido o nome do pai, e na falta, o da mãe (LRP, art. 55, par. único).

Daí que a única leitura possível desse dispositivo é que os pais são livres para escolher se o filho se chamará Jacó Pereira da Silva, com o nome do pai na frente e por último o nome da mãe, ou Jacó da Silva Pereira, forma tradicional, com o nome do pai encerrando o assunto.

O que é preciso entender é que hoje os tribunais determinam o registro da criança com duas mães e nenhum pai, ou com dois pais e nenhuma mãe, ou dois pais e uma mãe, ou uma mãe e dois pais, e seis avós, ou oito, e que nada impede que se registre uma criança em nome do pai e da mãe, nessa ordem, ou na ordem inversa, tanto faz.

O resto é burocracia. E desconhecimento da lei.

(*) Tabelião, Especialista em Direito Registral Imobiliário 

DAÇÃO EM PAGAMENTO - USO EQUIVOCADO

DAÇÃO EM PAGAMENTO - USO EQUIVOCADO

                             Dação em Pagamento - Uso Equivocado

                                                                                   (*) José Hildor Leal

Há uso inadequado do instituto da dação em pagamento no meio notarial e de registros, na formação de diversos contratos imobiliários, em especial nas hipóteses que envolvem a entrega de terreno, pelo proprietário, para receber do incorporador, em troca, área construída no local.

Alguns tabeliães têm formalizado tais acordos por meio de escritura pública de compra e venda com promessa da dação em pagamento, a ser cumprida na conclusão do empreendimento, quando compra e venda não pode ser, e sendo troca, o instituto que melhor reflete o negócio entabulado pelos contratantes é a permuta.

Não pode ser compra e venda porque esta exige pagamento em dinheiro, conforme dispõe o Código Civil brasileiro, art. 481: “Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro”.

Também não pode ser dação em pagamento porque esta pressupõe sempre um contrato não cumprido. Outra não é a interpretação lógica do art. 356 do código, quando estabelece que “o credor pode consentir em receber prestação diversa da que lhe é devida”.

Portanto, a dação em pagamento, ou "datio in solutum", é modalidade extintiva de obrigação, não sendo admissível na formação do contrato, mas apenas e tão somente na sua conclusão, quando o devedor for inadimplente com relação à dívida assumida, e para cumprir a prestação oferece ao credor outra coisa, móvel ou imóvel, ficando ao critério deste aceitar ou não a oferta (art. 313), podendo recusá-la, ainda que mais valioso o bem oferecido, e exigir o pagamento pela forma originalmente ajustada.

Aliás, tanto se dá razão ao exposto que a forma dos negócios vem disciplinada no título que trata das várias espécies de contrato, no Código Civil, a partir do art. 481, e a dação em pagamento se encontra no título que cuida do adimplemento e extinção das obrigações. Assim, sequer se pode chamar a dação em pagamento de contrato inominado. Não sendo compra e venda, por não haver pagamento em dinheiro, e nem dação em pagamento - ainda que se possa aplicar a ela os princípios da compra e venda, e muito menos doação, por não ser gratuito, sem dúvida que o negócio entabulado é de permuta, pois como dizem os próprios contratantes, na linguagem coloquial, o proprietário “dá em troca” o terreno. E a troca, ou permuta, se dá pela entrega de bem atual por bem futuro, e sendo certo ainda que à troca, ou permuta, aplicam-se as regras da compra e venda (art. 533), então é certo também que “pode ter por objeto coisa atual ou futura” (art. 483).

Concluída a obra, será necessária nova escritura, podendo ser nominada como “escritura de contraprestação de permuta”.

Aos contratantes, experts em negócios, mas leigos quanto aos aspectos legais e técnicos do direito contratual, não interessa o meio pelo qual seja formalizado o acordo entre eles. Aos tabeliães, porém, como profissionais do direito responsáveis pela organização técnica e administrativa dos serviços, objetivando segurança, validade e eficácia dos negócios jurídicos, incumbe a correta prática dos atos que lhe são confiados.

Ou não serão tabeliães, mas mero copiadores de minutas mal redigidas.

(*) Tabelião de Notas, Especialidta em Direito Registral Imobiliário 

RECONHECIMENTO DE FIRMA E CONTRATOS INVÁLIDOS

RECONHECIMENTO DE FIRMA E CONTRATOS INVÁLIDOS

                         Reconhecimento de Firma e Contratos Inválidos 

                                                (*) José Hildor Leal

Há temas que estão longe de ter entendimento pacífico entre profissionais dos diversos campos da atividade humana, como ocorre no meio de notas quanto à possibilidade do tabelião dar curso ou negar o reconhecimento de firma em contratos, recibos, declarações e outros papéis que apresentam conteúdo inválido, ilegal, imoral ou atentatório aos limites de dignidade humana.

A título de exemplo, foi negado o reconhecimento de firma em uma procuração para fins de casamento, sob o argumento de que a outorga do mandato está sujeita à forma exigida por lei para o ato a ser praticado (art. 657 CC).

Contrariada, e tendo matrimônio agendado em outra unidade da federação, onde não poderia se fazer presente no dia e hora agendados, a pessoa dirigiu-se a um segundo serviço de notas, que fez o reconhecimento solicitado, sem nenhuma dificuldade.

Qual tabelião agiu de acordo com os princípios éticos e morais que norteiam a atividade?

De forma resumida, reconhecimento de firma é a declaração de autoria da assinatura em documento, com o que o segundo tabelião nada mais fez do que a prestação do serviço que lhe foi solicitado.

Para Humberto Theodoro Júnior "a presunção de veracidade acobertada pela fé pública do oficial só atinge aos elementos de formação do ato e a autoria das declarações das partes, e não ao conteúdo destas mesmas declarações..." (Curso de Direito Processual Civil – vol. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1998, pag. 446).

Por outro lado, a Consolidação Normativa Notarial e Registral do Estado do Rio Grande do Sul determina que “os tabeliães só poderão lavrar ou autenticar, inclusive por reconhecimento de firmas, atos conforme a lei, o direito e a justiça” (art. 585).

A tabeliã Sheila Luft Martins, sobre a função notarial, ensina que “uma das principais características da atividade notarial, que reflete inclusive um de seus alicerces, é a segurança jurídica proporcionada pela participação do tabelião, profissional do Direito, isento e detentor de fé pública”.

De posse da procuração particular, o mandatário compareceu para a cerimônia de casamento do mandante, quando deu-se o problema, eis que o cartório do registro civil exigiu instrumento público (art. 1.542 CC).

Papéis particulares que afrontam a lei, o direito e a justiça, quando possíveis de verificação imediata, devem ter negado o acesso no serviço de notas, até porque a participação do tabelião, ainda que seja meramente reconhecendo a firma, sem entrar no mérito do conteúdo, acaba gerando uma falsa presunção de veracidade, ao leigo.

O TJ/RS, em sentença confirmada pelo STJ (REsp nº 1.453.704), reconheceu que "a falha na prestação do serviço prestado pelo tabelião gera um sentimento negativo no cidadão, que é suficiente para abalar um dos atributos da personalidade, a honra subjetiva".

Não se pode esquecer que o art. 1º da Lei 8.935/94 preceitua que os serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos.

Por isso, e não sendo pacífica a doutrina, deve o tabelião observar a sua função social.

(*) Tabelião, Especialista em Direito Registral Imobiliário 

SEPARAÇÃO DE BENS ERROS DE INTERPRETAÇÃO

SEPARAÇÃO DE BENS ERROS DE INTERPRETAÇÃO

                             Separação de Bens e Erros de Interpretação 

                                                 (*) José Hildor Leal

Admitir falhas não é fácil, assim como é difícil criticar erros alheios, em especial quando se trata de equívocos cometidos por colegas, no caso, notários e registradores.

Se o erro é escusável, o mesmo não se pode dizer de quem não observa a sua condição de profissional do direito responsável pela organização técnica e administrativa dos serviços destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, nos termos da Lei 8.935/94.

Não é possível conceber que o registrador civil emita uma certidão de casamento informando o regime da separação total de bens, quando se trata de separação obrigatória. E com a informação equivocada, o tabelião, desatento, lavrou escritura pública de compra e venda pela qual um dos contraentes fez a aquisição de uma unidade imobiliária, consignando ser casado pelo regime da separação total.

E a escritura foi registrada.

Verifica-se aí uma sequência de erros cometidos pelo registrador civil, pelo tabelião de notas, e por último, pelo registrador de imóveis. Do primeiro, ao informar erradamente o regime. Do segundo, porque não atentou para o erro do primeiro. E do terceiro, que seguiu a literalidade da escritura pública, sem exigir prova da adoção do regime de separação total, o que somente se dá através de pacto antenupcial, sendo ainda necessário o seu registro.

Feito o imbróglio, fui procurado pelo adquirente com a ideia de vender o imóvel sem a participação do outro cônjuge, alegando que por ser casado pelo regime da separação total, não há que se falar em comunicação patrimonial (art. 1.687).

O casamento foi celebrado em 2001, quando o varão contava com 64 anos de idade, motivo pelo qual foi feito sob o regime da separação obrigatória – somente a partir de 2010 a idade limite foi aumentada para 70 anos, através da Lei 12.344/10 – e não da separação total, como foi certificado por erro do registrador civil.

O correto, portanto, uma vez que o imóvel foi havido no curso do casamento, é que passou a pertencer a ambos os cônjuges, meio a meio, em comunhão de aquestos, por força da Súmula 377, do STF, e não somente ao que constou no título como outorgado comprador.

Diante disso, penso ter feito um esclarecimento necessário, porque embora o tema possa parecer trivial aos que operam com notas e registros, não é o que a prática tem demonstrado, em grande número de casos.

Não é possível que justamente quem seja encarregado de aplicar a lei desconheça o seu significado e as suas consequentes implicações no mundo jurídico, em prejuízo da paz social.

Embora doloroso, às vezes é preciso colocar o dedo na ferida, como um alerta necessário.

(*) Tabelião, Especialista em Direito Registral Imobiliário 

O TESTAMENTO DO LOBISOMEM

O TESTAMENTO DO LOBISOMEM

                                         O Testamento do Lobisomem

                                                         (*) José Hildor Leal

Para quem não acredita em lobisomem, recomendo ler o livro do Dr. Serafim Machado, "Por que Acredito em Lobisomem", relatando sobre um testamento de uma mulher muito rica, Auristela Pereira Alves, solteira, sem filhos, sem pais, muito doente, com idade mental de 8 anos, pelo qual destinou todos os seus bens a favor de estranhos, em detrimento dos herdeiros legais.

O fato é verídico, acontecido em Cachoeira do Sul, minha Terra Natal.

Acho que em todas as cidades existe ao menos um lobisomem, havendo vasta literatura sobre o assunto, como "O Coronel e o Lobisomem", entre outras obras. Na música, Ney Matogrosso consagrou "O Vira", e em termos regionais, temos no Rio  grande do Sul "O Lobisomem do Arvoredo", cantado por Mano Lima.

Quando piá, lá no meu Cerro Branco, muito ouvi falar do Propício, um velho de mais de 90 e tantos anos, que mesmo estando sempre à beira da morte não morria nunca, porque ninguém aceitava receber o "fado", como se dizia por lá, ou seja, enquanto não tivesse substituto para a lobisomisse o lobisomem vivia.

Depois, já trabalhando em cartório, eu próprio registrei o óbito do lobisomem, então com mais de 100 anos.

Tendo mudado para outra cidade, não imaginava eu que muito tempo depois da morte do Propício viesse a ser procurado por outro lobisomem para fazer o seu testamento.

Há pouco eu tivera conhecimento de sua existência por uma reportagem num periódico local, tratando de sua fama de vampiro, pelo fato de ser visto somente à noite, dentre outros indicativos.

Jovem, o homem não aparentava doença mental ou física, embora a palidez cadavérica e as unhas longas e afiadas. Tomadas as precauções para a validade ato, e certo da aptidão do indivíduo, tomei a termo suas disposições de última vontade, presentes duas testemunhas maiores e capazes, que o conheciam.

Declarando não ter herdeiros ascendentes ou descendentes, cônjuge, companheira ou companheiro, lhe foi possível dispor da totalidade de seu patrimônio, a quem quisesse, como bem entendesse. Por isso, determinou que a sua polpuda fortuna se destinasse ao canil de sua cidade, para acolher os cães de rua.

Sendo o testamento guarnecido por sigilo, por força de norma da Corregedoria-Geral da Justiça do Rio Grande do Sul, vedada a sua publicidade enquanto vivo o testador, tomo a liberdade de somente agora relatar o fato em razão da morte do lobisomem, dia desses.

Agora ando matutando, porque outra vez não sei com quem ficou o fado passado pelo lobisomem, cruz credo.

E não me olhem com essa cara. Juro que não foi comigo.

(*) Tabelião, Especialista em Direito Registral Imobiliário 

AS COISAS LINDAS DO AMOR E DA IDADE

AS COISAS LINDAS DO AMOR E DA IDADE

                                 As coisas lindas do amor e da idade

                                                                (*) José Hildor Leal

Correu notícia, num dia desses, que um tabelião foi condenado a pagar cento e vinte mil Reais porque autorizou a lançar, em seu livro de notas, uma escritura pública declaratória de união estável entre um homem com 28 e uma mulher com 92 anos de idade, tendo os conviventes declarado que já estavam havia mais de dez anos nessa situação, quer dizer, ele desde antes dos 18, e ela quase uma guria, com pouco mais de 80 anos.

Primeiro não acreditei, mas a fonte era segura.

A única coisa possível de compreensão, diante do fato, é que o amor é lindo. Não tenho nada contra as pessoas que se apaixonam, muito antes pelo contrário, ainda que uma não tenha nem 18 anos, e a outra já tenha ultrapassado os 80.

Afinal de contas, o que são 64 anos de diferença, senão uma bagatela?

Para quem tiver tempo de pesquisar e interesse na leitura, pode encontrar o enredo completo no Processo nº 2016/2168892 (origem nº 0048142-07.2015.8.26.0100 – 2ª Vara de Registros Públicos) - São Paulo.

Agora pergunto o que aconteceria se o tabelião, ao contrário de atender o pedido dos enamorados, tivesse recusado dar curso ao que lhe foi pedido?

Muito possivelmente seria denunciado por discriminação ao idoso, processado e julgado culpado, o mais provável.

O Estatuto do Idoso é bem claro, no seu artigo 2º: “O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade”.

Em outras palavras, como proibi-lo de amar? Logo de amar, tão lindo que é amar!

No entanto não se pode esquecer que o tabelião foi condenado a pagar R$ 120.000,00 porque registrou e deu fé pública sobre a situação declarada pelos viventes.

É o risco da profissão. Muitas vezes os profissionais do direito que atuam com notas e registros se veem em situações assim, ameaçados por uma faca de dois gumes, entre o fazer e o deixar de fazer. É aquela velha história: se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.

No caso exposto, o juiz entendeu que o tabelião deveria ter desde logo verificado indícios de fraude, como por exemplo a pretensão do varão em receber pensão da previdência social, pela morte da companheira, e por isso a condenação.

Assim, entre ficar ou correr, nenhuma coisa e nem outra. A lei é bem clara: o tabelião tem a missão de tomar a termo e dar validade ao que lhe for solicitado, formalizando juridicamente a vontade das partes.

O resto depende da posição do juiz.

(*) Tabelião, Especialista em Direito Registral Imobiliário 

O ENTERRO DA PERNA E O REGISTRO DE ÓBITO

O ENTERRO DA PERNA E O REGISTRO DE ÓBITO

                         O Enterro da Perna e o Registro de Óbito

                                                            (*) José Hildor Leal

Já faz tempo que compareceu, no cartório de um colega, um cidadão querendo registrar o óbito de uma perna, não dele, que andava com as duas, mas de um irmão, que tinha perdido uma.

Foi mais os menos assim: o irmão "perna-de-pau", que na linguagem dos boleiros quer dizer "jogador ruim", bateu noutro perna-de-pau, numa dividida lá pelo meio de campo, e o resultado foi que conseguiram quebrar as duas pernas direitas, a grossa e a fina. Claro, a direita de um e a direita do outro.

Coisa feia, com fratura exposta.

Levados ao hospital, feitos os procedimentos de praxe, pinos, porcas e parafusos, suturas e isso e aquilo, foram os dois liberados depois do gesso.

Até aí nada de mais, ao menos com a perna do outro, pois com o irmão do cidadão que compareceu ao cartório só não aconteceu o pior, ou a "ida desta para a melhor" porque os médicos lhe amputaram a perna uma semana depois, gangrenada.

O resto se salvou.

Erro médico! – Disse.

Pois agira vinha ele ao cartório registrar o óbito da perna, exigência do cemitério onde seria feito o enterro da perna. Sem certidão de óbito não teria sepultamento, lhe disseram lá.

Trazia em mãos a declaração de óbito parcial, passada por um médico.

Quanto a isso, sim, se pode dizer: erro médico!

Negado o registro, vociferou contra a burocracia, os cartórios, os médicos e os cemitérios.

Pois foi daí que o cartorário pediu a opinião dos colegas, porque afinal de contas tinha diante de si um cidadão que acabara de perder um pedaço de um irmão, e fosse ou não fosse perna-de-pau, era sempre uma perna, ou um irmão. Pior, o cidadão estava nervoso e tinha consigo uma declaração de óbito, assinada por um médico, e o enterro estava marcado para dali a pouco.

Consultado, respondi que o registro não poderia ser feito no Ofício do Registro Civil das Pessoas Naturais, e justifiquei que o cartório registra a morte das pessoas naturais, e naturalmente que uma perna não é uma pessoa natural.

Lembro que outra bem fundamentada resposta foi dada pelo colega Eduardo Oliveira, lá de Iguape, Estado de São Paulo, inclusive informando um link onde se poderia encontrar a recusa para o registro solicitado, no endereço eletrônico http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/cartilha_do_cfm_ms2.pdf.

Peço licença ao Eduardo para complementar com suas palavras: "… vejam que aos médicos é proibido emitir DO (Declaração de Óbito) para o caso de amputação. Logo, nada deve ser levado ao Registro Civil, pois a amputação de um membro não caracteriza a morte ou a diminuição da importância da pessoa natural, não devendo ser objeto de qualquer tipo de publicidade".

Depois se soube que a situação foi contornada, com o sepultamento sem registro em cartório, e que o dono da perna não foi ao enterro, para não chorar.

Cartório tem cada história.

(*) Tabelião, Especialista em Direito Registral Imobiliário