O ENTERRO DA PERNA E O REGISTRO DE ÓBITO

O ENTERRO DA PERNA E O REGISTRO DE ÓBITO

                         O Enterro da Perna e o Registro de Óbito

                                                            (*) José Hildor Leal

Já faz tempo que compareceu, no cartório de um colega, um cidadão querendo registrar o óbito de uma perna, não dele, que andava com as duas, mas de um irmão, que tinha perdido uma.

Foi mais os menos assim: o irmão "perna-de-pau", que na linguagem dos boleiros quer dizer "jogador ruim", bateu noutro perna-de-pau, numa dividida lá pelo meio de campo, e o resultado foi que conseguiram quebrar as duas pernas direitas, a grossa e a fina. Claro, a direita de um e a direita do outro.

Coisa feia, com fratura exposta.

Levados ao hospital, feitos os procedimentos de praxe, pinos, porcas e parafusos, suturas e isso e aquilo, foram os dois liberados depois do gesso.

Até aí nada de mais, ao menos com a perna do outro, pois com o irmão do cidadão que compareceu ao cartório só não aconteceu o pior, ou a "ida desta para a melhor" porque os médicos lhe amputaram a perna uma semana depois, gangrenada.

O resto se salvou.

Erro médico! – Disse.

Pois agira vinha ele ao cartório registrar o óbito da perna, exigência do cemitério onde seria feito o enterro da perna. Sem certidão de óbito não teria sepultamento, lhe disseram lá.

Trazia em mãos a declaração de óbito parcial, passada por um médico.

Quanto a isso, sim, se pode dizer: erro médico!

Negado o registro, vociferou contra a burocracia, os cartórios, os médicos e os cemitérios.

Pois foi daí que o cartorário pediu a opinião dos colegas, porque afinal de contas tinha diante de si um cidadão que acabara de perder um pedaço de um irmão, e fosse ou não fosse perna-de-pau, era sempre uma perna, ou um irmão. Pior, o cidadão estava nervoso e tinha consigo uma declaração de óbito, assinada por um médico, e o enterro estava marcado para dali a pouco.

Consultado, respondi que o registro não poderia ser feito no Ofício do Registro Civil das Pessoas Naturais, e justifiquei que o cartório registra a morte das pessoas naturais, e naturalmente que uma perna não é uma pessoa natural.

Lembro que outra bem fundamentada resposta foi dada pelo colega Eduardo Oliveira, lá de Iguape, Estado de São Paulo, inclusive informando um link onde se poderia encontrar a recusa para o registro solicitado, no endereço eletrônico http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/cartilha_do_cfm_ms2.pdf.

Peço licença ao Eduardo para complementar com suas palavras: "… vejam que aos médicos é proibido emitir DO (Declaração de Óbito) para o caso de amputação. Logo, nada deve ser levado ao Registro Civil, pois a amputação de um membro não caracteriza a morte ou a diminuição da importância da pessoa natural, não devendo ser objeto de qualquer tipo de publicidade".

Depois se soube que a situação foi contornada, com o sepultamento sem registro em cartório, e que o dono da perna não foi ao enterro, para não chorar.

Cartório tem cada história.

(*) Tabelião, Especialista em Direito Registral Imobiliário